Liberdade de Religião (Projecto de lei n.º 14/VI/97)

 

A Assembleia Legislativa decreta, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 30.º do Estatuto Orgânico de Macau, para valer como lei o seguinte:

 

CAPÍTULO I

Disposições gerais

Artigo 1.º

(Âmbito de aplicação)

1. A presente lei regula a liberdade das convicções religiosas e a liberdade de prática religiosa que não estejam reguladas por instrumentos de direito internacional vigentes.

2. Aplica-se supletivamente às associações religiosas reguladas por instrumentos de direito internacional.

 

Artigo 2.º

(Liberdade de religião)

Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma convicção religiosa da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua convicção religiosa, individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, cumprimento dos ritos, práticas ou ensino.

 

Artigo 3.º

(Princípio da igualdade)

1. Todas as associações religiosas têm direito a igual tratamento.

2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou práticas religiosas.

 

Artigo 4.º

(Princípio da separação entre o Governo e a religião)

1. Este Território não professa qualquer religião.

2. As relações mantidas entre o Governo do Território e as associações religiosas são reciprocamente independentes.

3. As igrejas e outras comunidades religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funções, bem como na realização das suas actividades religiosas.

 

Artigo 5.º

(Respeito pelo direito à reserva da intimidade)

1. Ninguém pode ser perguntado, por qualquer serviço público, acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis.

2. Ninguém pode ser prejudicado por se recusar a responder aos serviços públicos acerca das suas convicções ou prática religiosa.

 

CAPÍTULO II

Liberdade das convicções religiosas

Artigo 6.º

(Liberdade das convicções)

1. Toda e qualquer pessoa tem direito de:

a) Ter ou não ter religião, mudar de associação religiosa ou abandonar aquela a que pertenceu, agir ou não em conformidade com as prescrições da associação religiosa a que pertença;

b) Exprimir as suas convicções, separadamente ou em comum, em público ou em privado;

d) Difundir, por qualquer meio de comunicação, a fé da religião que professa;

e) Praticar os actos e ritos próprios da religião professada.

 

Artigo 7.º

(Ilimitabilidade da liberdade das convicções)

É inviolável a liberdade das convicções religiosas que, em caso algum, pode ser afectada ou limitada.

 

CAPÍTULO III

Liberdade das práticas religiosas

Artigo 8.º

(Liberdade das práticas)

1. As pessoas podem reunir-se para as práticas religiosas ou para outros fins específicos da vida religiosa.

2. Não dependem de autorização previa as reuniões mencionadas no número anterior e os desfiles da mesma natureza.

3. Não dependem de aviso prévio as reuniões mencionadas no número 1 deste artigo que se realizem dentro de igrejas, templos ou lugares a elas especialmente destinados, bem como a celebração dos ritos próprios dos actos fúnebres dentro de cemitérios.

4. Nas restantes reuniões ou desfiles, designadamente os que utilizem locais públicos, aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras gerais sobre reuniões e manifestações.

 

Artigo 9.º

(Actividades de ensino de religião)

1. É garantida às associações religiosas a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva fé.

2. Os estabelecimentos de ensino podem, a pedido dos pais ou de quem detiver o exercício do poder paternal dos alunos, ministrar a estes o ensino de qualquer religião e sua moral.

3. Os alunos com idade igual ou superior a 16 anos podem exercer eles próprios o direito referido no número anterior.

4. A inscrição em estabelecimentos mantidos por associações religiosas implica a presunção da aceitação do ensino da religião e moral da respectiva associação, salvo declaração em contrário feita pelas pessoas referidas nos números 2 ou 3 deste artigo, consoante o caso.

 

Artigo 10.º

(Ultilização de meios de comunicação)

As associações religiosas podem criar e utilizar meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.

 

Artigo 11.º

(Limites da liberdade de prática religiosa)

A ninguém será lícito abusar da liberdade de religião para praticar actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física e moral e a dignidade das pessoas.

 

CAPÍTULO IV

Das associações religiosas

Artigo 12.º

(Natureza religiosa)

São consideradas religiosas as associações constituídas com o fim principal da divulgação e sustentação de uma religião ou cuja composição seja constituída por aqueles que professam uma determinada religião.

 

Artigo 13.º

(Personalidade jurídica das associações religiosas)

1 . As associações religiosas adquirem personalidade jurídica correspondente à organização do conjunto dos respectivos fiéis.

2. A aquisição e perca de personalidade jurídica regem-se pela lei geral aplicável às associações.

3. O disposto no presente artigo não prejudica a existência de personalidade jurídica internacional de qualquer associação religiosa bem como a sua capacidade de direito interno.

 

Artigo 14.º

(Autonomia interna)

1. As associações religiosas, após a aquisição de personalidade jurídica, podem organizar-se de harmonia com as suas normas internas e administram-se livremente dentro dos limites da lei.

2. Às associações religiosas previstas no número anterior é permitido formar, no seu seio, associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto ou a prossecução de outros fins específicos da vida religiosa.

 

Artigo 15.º

(Relações internacionais)

As associações religiosas podem manter e desenvolver livremente relações com outras entidades religiosas não sediadas em Macau, bem como com associações e organizações religiosas dotadas de personalidade jurídica internacional.

 

Artigo 16.º

(Prestação de serviços sociais)

As associações religiosas podem, nos termos legais, criar escolas, hospitais e instituições de previdência, bem como prestar outros serviços sociais.

 

Artigo 17.º

(Bens)

1. As pessoas colectivas religiosas não carecem de autorização para a aquisição, utilização, disposição, sucessão e aceitação, a qualquer título, de bens doados.

2. A aquisição e alienação de bens por pessoas colectivas religiosas está sujeita ao disposto na lei geral salvo as excepções previstas legalmente.

 

Artigo 18.º

(Formação dos ministros)

1. As associações religiosas têm o direito de assegurar a formação dos respectivos ministros, podendo criar e gerir os estabelecimentos adequados a esse fim.

2. Consideram-se ministros da associação religiosa aqueles que, de harmonia com o respectivo regulamento, são designados para presidir os ritos da associação e exerçam jurisdição sobre os seus membros.

3. Os estabelecimentos referidos no número 1 estão sujeitos ao respeito da legislação geral referente aos estabelecimentos de ensino não público.

 

Artigo 19.º

(Sigilo)

1. Os Ministros de qualquer religião ou associação religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham tomado conhecimento em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inquiridos sobre eles.

2. A obrigação do sigilo persiste ainda que o ministro tenha deixado de exercer o seu múnus.

 

CAPÍTULO VI

Disposições finais e transitórias

Artigo 20.º

(Revogação)

É revogada a Lei n.º 4/7 1, de 21 de Agosto, tornada extensiva a Macau pela Portaria n.º 14/74 de 10 de Janeiro.

 

Artigo 21.º

(Vigência)

A presente lei entra em vigor após a sua publicação.

Exposição de motivos

É através do presente diploma que a liberdade religiosa actualmente existente na sociedade de Macau é reconhecida, de forma básica e legal.

Em termos formais, o diploma confirma, expressamente, o actual princípio de separação entre a política e a religião, bem como o princípio de igualdade entre diversas religiões. Regulamenta e salvaguarda a actual liberdade religiosa dos indivídios a partir de duas vertentes, i.e. a liberdade das convicções religiosas e a liberdade de prática religiosa, reconhecendo igualmente às associações religiosas existentes a liberdade de funcionamento.

O artigo 2.º do presente projecto de lei que diz: «Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma convicção religiosa da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua convicção religiosa, individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, cumprimento dos ritos, práticas ou ensino», é um preceito que tem como fonte o n.º 1 do artigo 18.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Por sua vez, o artigo 5.º (respeito pelo direito à reserva da intimidade) deriva do n.º 3 do artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa.

Sendo inviolável a liberdade das convicções religiosas, em caso algum esta liberdade como a de prática religiosa podem ser afectadas ou limitadas.

È garantida, conforme as práticas actualmente vigentes, a liberdade de prática religiosa, salvo de actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física e moral e a dignidade das pessoas.

Constitui já prática actual a liberdade de funcionamento das associações religiosas a que se refere o presente diploma, nomeadamente no tocante à autonomia interna das associações religiosas, à utilização de meios de comunicação, às relações internacionais, à disposição de bens, à formação dos ministros e à sua obrigação de sigilo.

Além de fazer parte do actual modo de vida da nossa sociedade, a liberdade religiosa encontra-se igualmente consagrada na Lei Básica de Macau. O reconhecimento, por via da lei, dessa liberdade como parte do actual modo de vida, contribuirá para a sua continuidade adequada.