COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS,

LIBERDADES E GARANTIAS

 

PARECER N.º 2/96

 

Assunto: Proposta de lei nº 6/V/95 que regula a dádiva, a colheita e a transplantação de órgãos e tecidos de origem humana

 

I

Introdução

 

1. A proposta de lei em apreciação foi distribuída a esta Comissão para exame e parecer, por despacho da Senhora Presidente, de 29 de Maio de 1995.

 

2. Para o efeito, a Comissão manteve diversas reuniões onde o articulado em questão mereceu uma profunda reflexão e aturada análise, contando com a colaboração do Sr. Deputado Lau Cheoc Vá, presente nas sessões de trabalho.

 

3. Na fase final da discussão e reformulação do articulado, a Comissão teve o privilégio de contar com o contributo do Senhor Professor Doutor Manuel da Costa Andrade que se disponibilizou gentilmente a colaborar na benfeitoria do diploma.

 

A Comissão pôde contar ainda com o precioso auxílio, designadamente ao nível das questões do foro médico, dos senhores doutores João Pinheiro e Rogério Santos, o primeiro, representante da Ordem dos Médicos, e Io Pat Ioc, presidente da Associação de Médicos de Macau, que apontaram pertinentes dúvidas ao articulado proposto.

 

4. Entretanto, a Comissão pretendeu, por ofício de 14 de Novembro de 1995, ser informada pelo Executivo "sobre se existem, desde já, meios técnicos e humanos para efectuar todas estas medidas , ou, em caso negativo, de qual o tempo que se prevê venha a ser necessário para concretizar os actos previstos no articulado apresentado" No entanto, até à data de elaboração e aprovação deste Parecer, não foi comunicada à Comissão qualquer resposta.

 

A senhora SASAS, questionada, em Sessão Plenária de 29 de Novembro, sobre as questões colocadas no mencionado ofício considerou que a questão posta era "vaga e imprecisa," e que "teria de mandar fazer tratados para responder", o que a Comissão interpretou com o sentido de que, embora não dispondo ainda dos meios adequados, a aprovação do diploma proposto daria o enquadramento legal necessário para as acções a empreender.

 

A Comissão adverte para o aparente desequilíbrio na redacção deste parecer porquanto, na análise na especialidade, a segunda metade dos artigos merece um desenvolvimento menor do que o de vários artigos iniciais.

 

Todavia, este desequilíbrio aparente é ditado pela natureza dos preceitos em jogo.

 

Na verdade, os dispositivos mais complexos encontram-se, fundamen-talmente, nos primeiro e segundo capítulos.

 

Como no decurso do presente parecer se mencionará, a referência a "transplantação" na identificação do diploma é algo ambiciosa. Nesta proposta não se regulam, de forma directa e exaustiva, os actos de transplante, matéria que, aliás, releva mais do foro deontológico e técnico.

 

Por outro lado, a Comissão chama, desde já à atenção que para a necessidade de divulgação e sensibilização social, das matérias objecto de regulação neste diploma, porquanto, só assim se poderá retirar efeito útil da aprovação de uma lei desta natureza, dado o consabido e constante défice de órgãos e tecidos de origem humana face às necessidades sentidas.

 

É convicção da Comissão que, por virtude de razões culturais e religiosas, a interiorização dos normativos do diploma por parte da sociedade de Macau, não será nem fácil, nem célere.

 

Por conseguinte, espera-se que as entidades competentes promovam, após a aprovação desta lei, as adequadas acções de informação e sensibilização – sem o que dificilmente a Lei passará da impressão no B.O..

 

Concluídas estas considerações preliminares, importa então avançar para a análise da proposta de lei.

 

II

Na Generalidade

 

5. A temática da proposta de lei em análise – dádiva, colheita e transplante de órgãos e tecidos humanos – transporta associada a si uma inevitável carga de valores e ideias que relevam profundamente nos planos cultural, moral, ético e religioso. Na verdade, a consciência e formação de cada um ditarão, concerteza, respostas díspares às questões que esta proposta faz levantar.

 

6. E com mais agudeza são levantadas estas questões porquanto, é bom salientar, esta é a primeira vez que um diploma desta natureza é objecto de discussão em Macau com vista àpositivação das soluções – boas ou más – que se propõe consagrar.

 

7. Para ilustrar o que atrás se afirmou, e desde já prevenir os destinatários deste parecer, as questões que se colocam não se reconduzem, de modo algum, a uma perspectiva técnico-jurídica, envolvem também, ou sobretudo, outro tipo de enfoque, pelo que se apresentam alguns casos reais ocorridos em diferentes países ( João Carlos Loureiro, Transplantações: Um olhar Constitucional, Coimbra, 1995; Dieter Giesen, International Medical Malpractice Law, 1988):

 

"Nos EUA, perante a descoberta de que uma filha, Anissa, sofria de leucemia e estava, em virtude disso, condenada a morrer, a não ser que se verificasse uma transplantação de medula, os país decidiram conceber uma criança, Marissa. Após um ano de vida, foi colhida a Marissa, medula óssea para salvar a vida da irmã."

 

Pergunta-se, quid iuris? Supondo que a operação efectuada teve sucesso em ambas as irmãs, será esta situação de admitir? E, se, pelo contrário, a operação importou severas lesões ou a morte de uma delas, por exemplo Marissa?

 

Um outro caso,

 

"Soror Maria del Carmen Berdejo, uma religiosa espanhola, doente do coração e com uma pequena esperança de vida, ofereceu em vida os seus olhos a um trabalhador de 39 anos, casado e que cegara em virtude de um acidente com soda cáustica"

 

Que resposta deve o legislador dar?

 

Finalmente, um outro caso ocorrido na Alemanha,

 

"A uma senhora grávida foi detectado, por um exame de ultra-som à sexta semana, que o feto era anencéfalo. Os pais decidiram não provocar um aborto, preferindo antes manter o curso da gravidez em ordem a permitir que o feto anencéfalo servisse de reserva de órgãos após o nascimento. O anencéfalo recém nascido foi ligado a um ventilador até se encontrarem receptores que aguardavam por transplantes renais."

Deverá o legislador permitir esta situação?

 

Deverá o legislador intervir, ou, pelo contrário, não se pronunciar?

 

No caso presente, as duas crianças que receberam os rins encontravam-se, dois anos após o transplante, saudáveis e com os rins a operar bem.

 

8. Os exemplos supra apresentados, todos eles, repetese, reais, permitem, a par de muitos outros que serão referidos ao longo deste parecer, penetrar no âmago das complexas questões que nos são inevitavelmente trazidas por esta proposta de lei.

 

De resto, a Comissão assume, conscientemente, que, qualquer que seja o sentido das soluções que venha a propor, não darão nunca essas soluções respostas absolutamente satisfatórias para todos. Cabe perguntar, por exemplo, como reagir quando se vê um receptor potencial a morrer na sua juventude enquanto o rim que o poderia ter salvo, está a ser enterrado ou cremado (Ian Kennedy, Treat Me Right, 1988)?

 

9. Estas questões têm vindo a conquistar um relevo cada vez maior na sociedade moderna dada a vertiginosa evolução da ciência médica e da biologia neste domínio. Concomitantemente, não surpreende que também no Direito se tenha acentuado a necessidade de ensaiar respostas indispensáveis para situar a pessoa humana num plano compatível com as novas conquistas (Napoleão Amarante, Doação de órgãos de pessoa viva ou morta para fins terapêuticos ou científicos, O Direito, 1990, pág. 503).

 

E, naturalmente, também no plano internacional, designadamente no seio da Organização Mundial de Saúde, tem esta temática sido objecto de atenção.

 

10. Com efeito, é já numeroso o número de ordenamentos jurídicos que consagram especificamente uma disciplina jurídica para estas questões. Na verdade, desde os países de cultura ocidental – como a Austrália, os EUA, a França, a Itália ou a Suécia – aos países árabes – como a Líbia a Síria ou a Tunísia –, passando pelos países deste continente – designadamente, Singapura, Malásia, Filipinas ou Sri Lanka-se encontram diplomas que regulam estas questões. Segundo uma publicação da OMS, Legislative Responses To Organ Transplantation de 1994, são recenseados 58 países dotados de legislação sobre a matéria.

 

11. Por outro lado, a Organização Mundial de Saúde, doravante OMS, e o Conselho da Europa, constituem exemplos de organizações internacionais que não se alhearam da problemática. Ainda, outro tipo de entidades como a Associação Médica Mundial e a Sociedade de Transplantes (Transplantation Society) procuram dar o seu contributo em tão controvertida matéria.

 

12. Em Macau, todavia, nunca existiu legislação específica sobre a matéria, porquanto nem os órgãos legislativos locais legislaram para Macau, nem os órgãos legislativos de Portugal procederam à extensão ao território da já significativa lista de diplomas produzidos nas últimas décadas.

 

Não deve, no entanto, ser olvidada a existência de normas que poderão relevar, mesmo que reflexamente, em algumas das questões que a colheita e transplante de órgãos podem levantar. Designadamente, os artigos 144.º, 150.º e 151.º do recente Código Penal de Macau.

 

13. Em suma, pode afirmar-se o actual vazio legislativo, em termos de regulação específica e directa, nesta matéria. Por conseguinte, e não cuidando agora de saber das capacidades técnicas dos estabelecimentos hospitalares para efectuar este tipo de actos, a Comissão é de opinião que a apresentação da proposta de lei é, só por isso, positiva.

 

14. No que respeita aos ordenamentos jurídicos tradicionalmente objecto de estudo aquando da feitura de leis no território, ou seja o de Hong Kong e o da República Popular da China, cabe referir que as soluções leqislativas de Hong Kong foram objecto de estudo e de recolha de soluções a propor no presente parecer. Relativamente à RPC, não se logrou encontrar qualquer diploma regulador da questão.

 

15. Entrando na análise ao articulado proposto, ele contém vinte e dois artigos distribuídos por cinco capítulos, "Disposições Gerais", "Colheita em vida", "Colheita em cadáveres", "Sanções" e "Disposições finais".

 

16. A proposta de lei tem, assumidamente (cfr. a Exposição de motivos), como fonte principal a lei vigente em Portugal, ou seja, a Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, Colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana.

 

Esta lei veio revogar o Decreto-lei n.º 553/76, de 13 de Julho, que foi objecto de profundas críticas na doutrina jurídica (cfr., entre outros, João Carlos Loureiro, ob. cit.), pelo Provedor de Justiça (Parecer sobre as Deficiências e Reformulação do actual sistema legislativo em matéria de colheitas e transplantações de órgãos, DAR, II-C, 1990) e pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (Parecer sobre o transplante de tecídos e órgãos, 1992).

 

17. No entanto, a nova legislação portuguesa, a citada Lei n.º 12/93, bem como o Decreto-Lei n.º 244/94, de 26 de Setembro, que regula o Registo Nacional de Não Dadores, tem sido, por seu turno, igualmente objecto de críticas ( João Carlos Loureiro, ob. cit.; Orlando Carvalho e José Faria e Costa, apud ob cit; Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, págs. 190 e 191 ).

 

18. Importa, não obstante, e desde já, assinalar as diferenças essenciais entre a lei portuguesa e a proposta de lei em causa. A saber, o sistema de doação post mortem, por um lado, e a consagração de sancionamento específico, pelo outro.

 

19. No que respeita à primeira questão, a da doação post mortem, a lei portuguesa optou pelo modelo da oposição ou dissentimento, que se traduz na possibilidade de todos aqueles que não pretendam ser dadores terem de manifestar expressamente essa oposição. Isto significa, no outro verso da medalha, que a falta de oposição equivale à possibilidade de colheita de órgãos e tecidos.

 

A proposta de lei, ao invés, opta pelo modelo do consentimento, ou seja, a simples não manifestação de oposição não legitima qualquer extracção para qualquer fim.

 

No direito comparado podemos encontrar diversos exemplos de ambas as modalidades, bem como algumas variantes de entre estes dois grandes sistemas. Seguem o primeiro, entre outros, a Áustria, a Espanha e França. Diferentemente, optam pelo segundo a Argentina, Cuba e a Malásia.

 

20. Relativamente à segunda questão em que se verifica diferença de relevo, a lei portuguesa omite qualquer esquema sancionatório destinado a proteger "os bens e os valores que condutas ilícitas associadas à dádiva, à colheita e ao transplante de órgãos e terceiros podem ofender" (cfr. Exposição de motivos). Com efeito, a proposta prevê, no seu capítulo IV, diversos normativos para o efeito. Esta preocupação é patente, designadamente, em Hong Kong, cfr. o Human Organs Transplant Bill, 1992, e a Medical ordinance (cap. 278), e em Singapura, cfr. o Human Organ Transplant Act, 1987.

 

21. Em sede de apreciação na generalidade, a Comissão é de parecer favorável, quer quanto à iniciativa, quer quanto ao conteúdo da proposta de lei, sem prejuízo das sugestões de alteração e de aditamento a seguir expressas em sede de apreciação na especialidade.

 

Assume particular importância a necessidade, apontada em vários meios e em diversos momentos, de regular estas matérias em virtude, entre outros, dos transplantes de córneas.

 

Por outro lado, é imperioso dar a necessária cobertura legal à prática, já hoje, de determinados actos médicos sob pena de se manter, designadamente, "numa situação de ilegitimidade todos os actos que têm por finalidade a investigação científica" (Parecer de Médicos) . Ou seja, no rigor das coisas, vários actos médicos praticados em Macau fazem incorrer os seus autores em ilícitos penais e civis!

 

Por outro lado ainda, é notória a ausência quase total de regras específicas sobre os actos de transplantação (Parecer da Associação de Médicos de Macau).

 

Em conclusão, parcelar, dir-se-á positiva a apresentação da proposta de lei pelos motivos atrás aduzidos, devendo tão breve quanto possível aprovar-se diploma regulador desta matéria, sem prejuízo de uma necessária e ponderada reflexão sobre os problemas em causa, e sem prejuízo do extenso recurso a opiniões médicas.

 

III

Na Especialidade

 

22. – Artigo 1.º – (Objecto) – O número 1 deste preceito estabelece: "... os princípios e as regras a observar nos actos que tenham por objecto a dádiva e a colheita de órgãos ou tecidos de origem humana, para fins. de diagnóstico, terapêuticos ou de transplantação, bem como nas próprias intervenções de transplantação.’’A fonte deste normativo é, quase ipsis verbis, o número 1, do artigo 1º, da lei portuguesa. Sobre o seu conteúdo, a Comissão dá parecer favorável.

 

Todavia, afigura-se de melhor técnica legislativa, a substituição da epígrafe de "objecto" para "âmbito material de aplicação", como, de resto, sucede com a lei portuguesa.

 

Quanto ao número 2, que pretende excluir do âmbito de aplicação do diploma, a exemplo da lei de Portugal, a "transfusão de sangue", a dádiva de óvulos e de esperma", a "dádiva e a colheita de órgãos para fins de investigação científica" e a " transferência e manipulação de embriões", a Comissão tem algumas reservas a colocar às opções constantes do articulado proposto.

 

Com efeito, e desde logo por uma questão de economia legislativa, é de ponderar a submissão a este futuro diploma legal de um mais amplo leque de matérias, sem prejuízo, naturalmente, daquelas que se revelem inadequadas a este novo regime legal.

 

Quanto à alínea a) – transfusão de sangue –, a Comissão ponderou a possibilidade de submeter este tipo de actos ao regime que se propõe aprovar, ou seja, considerou a eliminação desta alínea. À motivação genérica, já supra mencionada, acresceu a circunstância de, actualmente, a colheita e transfusão de sangue – prevista no diploma que estabelece o Centro de Transfusões de Sangue, artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 29/92/M, de 8 de Junho – obedecerem, essencialmente, a normas de natureza meramente administrativa.

 

A opinião dos médicos consultados foi, no entanto, no sentido da manutenção da opção original da proposta de lei, porquanto a natureza da matéria aconselha um tratamento legal autonomizado destas outras questões, devendo, no entanto, aditar se "‘colheita e" antes de transfusão; caso contrário, as normais colheitas de sangue teriam de ser efectuadas sob directa responsabilidade médica e sempre em estabelecimentos hospitalares.

 

Tal opinião não preclude, naturalmente, a desejabilidade de enquadramento legislativo da matéria.

 

No que tange à alínea b) – A dádiva de óvulos e de esperma –, a Comissão é de parecer, comungado pelos médicos consultados, que, para além da inexistência de condições técnicas no território, a natureza da matéria aconselha à sua regulação em diploma próprio, a exemplo de Portugal (Decreto-Lei n.º 319/86, de 25 de Setembro ) e de vários outros ordenamentos jurídicos.

 

No que respeita à alínea c) – a dádiva e a colheita de órgãos para fins de investigação científica –, a Comissão entende que esta matéria, que inclui também a educação médica, deverá estar subordinada ao regime jurídico da futura lei, não se vislumbrando razões válidas para o seu afastamento. Além de que, e conforme já referido supra, a manter-se esta alínea, continuariam a descoberto a prática destes actos.

 

Em Portugal, é verdade que a matéria é, parcialmente, objecto de lei especial (Lei n.º 1/70, de 20 de Fevereiro); no entanto, a ressalva que é operada pela Lei n.º 12/93 compreende-se à luz do regime de doação post mortem, ou seja, porque vigora o modelo de oposição. ora, dado que em Macau se pretende consagrar o modelo de doação voluntária, parece não fazer sentido excluir do âmbito de aplicação do diploma esta matéria. Esta opinião foi sufragada por todos os especialistas consultados pela Comissão devendo, em conformidade eliminar-se esta alínea, e, por conseguinte alterar-se a letra da alínea seguinte.

 

Na sequência do exposto, a Comissão propõe a introdução de um novo dispositivo – como adiante se desenvolve.

 

No que toca à alínea d) – a transferência e manipulação de embriões –, entende-se que esta matéria não deverá constar desta lei, pelo que a Comissão adere à solução proposta, sem embargo das benfeitorias que agora se sugerem.

 

Com efeito, e atendendo ao espírito da proposta que pretendeu, sem dúvida, subtrair a totalidade das questões em causa na alínea d) à disciplina jurídica do futuro acto normativo, sugere-se, por mais correcto tecnicamente e, por conseguinte, mais abrangente, a introdução de dois aditamentos.

 

Assim, deve incluir-se antes de "transferência" a colheita; por outro lado, deve-se incluir na redacção do preceito, a seguir a "manipulação de", "produtos de fecundação" dado que o disco embrionário didérmico só se forma a partir do 8º dia pós fecundação, pelo que a fase de zigoto, mórula e blastocisto não está especificada (Cfr. Parecer de Médicos).

 

A Comissão considera ainda dever esta lei prever já, ainda que sem estatuição de regras pormenorizadas, a possibilidade de serem efectuadas transplantações heterólogas ou xenotransplantações, recorde-se que este tipo de transplantações já se praticam regularmente, como por exemplo as válvulas cardíacas porcinas.

 

Finalmente, introduzem-se benfeitorias na redacção.

 

23. – Artigo 2.º – (Âmbito pessoal) – O presente artigo delimita o âmbito pessoal de aplicação do diploma, estabelecendo ser este aplicável aos "residentes no território de Macau, independentemente da sua nacionalidade".

 

Afigura-se à Comissão que o âmbito de aplicação proposto édemasiadamente restrito. A justificação plausível para tal opção só poderia ser a tentativa de evitar que outros que não os residentes fossem eventualmente sujeitos dadores de órgãos post mortem contrariamente à sua vontade ou convicções. Todavia, tal receio é de todo injustificado dado o regime de doação voluntária prescrito no artigo 10.º.

 

Aliás, por essa diferença de regimes é que se justifica o normativo consagrado no artigo 2.º da lei portuguesa, que, no entanto, consegue ainda assim ser mais aberto que o da proposta de lei.

 

Por outro lado, e não cuidando aqui de indagar qual o conceito de residente a que a proposta faz apelo, não se percebe por que razão não residentes ocasionalmente em Macau que, de forma inequívoca, sejam dadores post mortem – por exemplo por serem portadores de cartão de dador emitido no país de origem –, não possam ser abrangidos pela disciplina deste diploma.

 

Na outra face da questão, ou seja, na perspectiva do receptor, a exclusão operada pelo artigo 2º., tal significaria que a um não residente não pudesse ser salva a sua vida em virtude de não ser um sujeito com capacidade jurídica para receber um transplante? Não parece que tivesse sido essa a intenção da proposta.

 

Pelo exposto, a Comissão é de parecer que o preceito em questão deve ser eliminado, por forma a poder abranger todos os outros sujeitos que não os residentes. Em sequência, outros preceitos da proposta devem sofrer alterações em conformidade, designadamente o artigo 10º, por forma a contemplar estas outras situações.

 

24.- Artigo 3º – (Estabelecimentos autorizados) – O número 1 deste normativo estabelece que os actos em questão apenas podem ser realizados em estabe-lecimentos hospitalares, públicos ou privados, e sob a responsabilidade e directa vigilância médica e de acordo com as respectivas "legis artis".

 

A Comissão adere, no essencial, à redacção proposta para este artigo, concordando com as preocupações subjacentes ao articulado. Na verdade, questões desta natureza e melindre, não poderão ficar à mercê de qualquer método, entidade ou pessoa.

 

No que respeita à redacção deste número 1, a Comissão tem, contudo, algumas sugestões a fazer. Assim, deve substituir-se a referência a estabelecimentos hospitalares "públicos ou privados", por "autorizados para o efeito", porque mais correcto tecnicamente; por outro lado, é concebível a criação de um outro estabelecimento hospitalar público que possa não estar em condições, desiqnadamente de apetrechamento técnico, de efectuar os actos de colheita e transplante.

 

Relativamente ao número 2, que estipula que "Somente os médicos autorizados, nos termos da lei, a exercer a respectiva profissão em Macau podem assumir a responsabilidade referida no número anterior", ou seja, a responsabilidade e directa vigilância da realização dos actos em questão, a Comissão discorda do regime aqui proposto.

 

Na verdade, não se entende "qual o alcance desta disposição que impede por exemplo que estrangeiros qualificados mas que não estão legalmente autorizados a exercer a sua profissão em Macau – entende-se como licenciados pelos S. S. M. – pratiquem qualquer dos actos previstos no diploma" (Parecer cit.). ou seja, em operações de elevado grau de risco e de exigência técnica, parece ficar invia-bilizado ao menos na prática, o recurso a reputados especialistas que exerçam a sua actividade nos EUA, em Hong Kong, ou outro qualquer local.

 

Em conformidade, a Comissão propõe alterar o preceito no sentido de permitir, e de forma expedita, o recurso a especialistas de fora de Macau. Assim, devem suprimir-se as referências "nos termos da lei" e "em Macau". Em alternativa, pode consagrar-se um novo número 3 que contemple expressamente a possibilidade de uma autorização pontual, sem delongas e formalismos inadequados, para outros médicos que não os licenciados pelos S.S.M..

 

25. – Artigo 4.º – (Confidencialidade) – Sobre este preceito, que estabelece o princípio da confidencialidade, da identidade do dador e da do receptor, a Comissão adere ao articulado proposto.

 

Este princípio, que sofre algumas excepções atendíveis, é de grande importância no sentido de precaver, quer a eventual comercialização encapotada de órgãos, quer a reserva da intimidade, valor constitucionalmente protegido.

 

A regra da confidencialidade é, aliás, presença constante em diversos ordenamentos jurídicos, como por exemplo no Canadá, na Federação Russa, em Singapura , no Sri Lanka e em Portugal.

 

26. – Artigo 5.º – (Gratuitidade) – Este preceito consagra o princípio da gratuitidade, ou seja, proíbe a comercialização de órgãos e tecidos de origem humana, explicitando e concretizando, ao longo dos seus quatro números, esse princípio director das colheitas e transplantações.

 

A sua fonte imediata é o artigo 5º da lei nº 12/93, pesem embora algumas alterações introduzidas, como, por exemplo, a cisão em dois do número 1 daquela lei.

 

Este princípio é, sem dúvida, um dos mais significativos e constantes ao nível de direito comparado e ao nível de instâncias internacionais, estando inerente a ideia – note-se na identificação do diploma a palavra dádiva – de solidariedade social e entre-ajuda (Paula Ribeiro de Faria, Os Transplantes de Órgãos, 1995, pág. 27).

 

Sem pretensões de exaustão, sempre se referirá que, em Hong Kong, em França, na Rússia, em Singapura, no Reino Unido, na Austrália – mais precisamente nos Estados Australianos -, na Áustria, em Espanha, na Tunísia, na Hungria, entre muitos outros, se proíbe expressamente a comercialização de órgãos e tecidos de origem humana.

 

Sabe-se, no entanto, que ocorrem vendas de órgãos, mesmo não regeneráveis, mormente em locais onde inexiste legislação, sendo que receptor e dador viajam até esses locais, para que se proceda à colheita e transplantação, mediante justa compensação (Dieter Giesen, ob.cit.).

 

Deve, no entanto, ter-se bem presente que a escassez de órgãos sentida, a nível mundial, poderia eventualmente ser amenizada se se permitisse a abertura de um mercado de órgãos. Não deve surpreender, por isso, que não faltem já defensores da comercialização de órgãos e tecidos de origem humana e que afirmam: meu corpo, minha propriedade. Por exemplo, nos EUA, o preço de um rim, cifrava-se, publicamente, em 34 500 USD, em 1985.

 

Não obstante, e até por uma exigência do princípio da dignidade humana e do direito à vida (João Loureiro, ob.cit., pág. 43) a proibição de comercialização de órgãos humanos deve ser , como efectivamente o é, a opção a tomar pelo legislador. Também em nome do princípio da igualdade se pode ancorar esta recusa de comercialização de órgãos, dado ninguém poder ser prejudicado ou beneficiado em razão da sua situação económica (Paula Ribeiro de Faria, ob. e loc. cit.).

 

Por outro lado, pergunta-se, qual a efectiva liberdade do potencial vendedor do seu órgão quando não tem sustento económico sequer para se alimentar?

 

Constata-se, igualmente, que, na maior parte das situações conhecidas, os vendedores dos seus órgãos não reúnem as condições médicas apropriadas.

 

Reforçando esta linha de pensamento, e, pretende-se, de conduta, a OMS, estabelece nos seus citados princípios directores, número 5: "O corpo humano não pode ser objecto de transacções comerciais. Consequentemente, é proibido dar ou receber uma contrapartida pecuniária (ou qualquer outra compensação ou recompensa) pelos órgãos."

 

E, no mesmo sentido, a Resolução 78 e a Recomendação 79 do Conselho da Europa, a Declaração de 1970 da Sociedade de Transplantes, e a Declaração de Madrid da Associação Médica Mundial. Também no projecto de Protocolo Sobre a Transplantação de órgãos, do Conselho da Europa, se prevê a não comer-cialização de órgãos.

 

Quanto à análise do articulado, a Comissão entende dever fundirem-se os números 1 e 2, porque mais clara resultará a proibição de comercialização, como acontece, de resto, na lei inspiradora. Ainda, deve retirar-se a referência a transplante/transplantações, como forma de evitar potencial fraude à lei, ou pelo menos ao seu espírito, porquanto se poderia ficar tentado a permitir uma colheita remunerada, sem a finalidade directa de transplante. Por outro lado, deve aditar-se a expressão "em circunstância alguma", com os mesmos propósitos de clarificação.

 

A Comissão entende, ainda, que merece previsão e punição a publicidade da venda de órgãos e tecidos de origem humana, nos termos expostos aquando da análise ao artigo 17.º.

 

27. – Artigo 6.º – (Admissibilidade ) – Este preceito abre o capítulo II, que se debruça sobre a colheita em vida.

 

O articulado proposto procura traçar fronteiras no sentido de clarificar quais as colheitas e dádivas que são admissíveis e que outras não são possíveis. A matéria aqui tratada constitui uma das que é susceptível de gerar controvérsia, desde logo ao nível da opção legislativa a adoptar.

 

A Comissão tem várias criticas e sugestões a formular a propósito dos vários números deste artigo 6.º "Assim, a consequência mais gravosa que é criada resulta da interpretação dos artigos referentes à colheita em vida (...) em que se estipula no seu ponto 1 que «apenas são permitidas as colheitas em vida de substâncias regeneráveis»

 

Cria-se aqui uma situação em que, por via legal, e após a entrada em vigor desta Lei, não estão autorizadas as seguintes situações:

 

– Biópsias de estruturas não regeneráveis (cérebro, coração, pulmões, rins, etc).

 

– Exegeses de estruturas não regeneráveis (esplenectomias, nefrectomias, etc.).

 

– Excisões totais ou subtotais de órgãos não regeneráveis, incluindo as neoplasias que aí se localizam.

 

– Amputações de membros." (Parecer cit.).

 

Ou seja, todos aqueles actos ficariam, em princípio, ilegitimados com a aprovação, sem alterações, do articulado proposto, o que não corresponde, certamente, ao espírito do legislador. "Caberá então perguntar como se irá proceder em matéria de actos diagnósticos e terapêuticos após a entrada em vigor desta Lei." (Parecer cit.)

 

Por outro lado, e atendendo ao regime resultante da aplicação conjugada dos números 1 e 3, ficariam sempre proibidas as dádivas e colheitas no caso de menores e incapazes, "deixando totalmente fora do âmbito de aplicação as colheitas para fins diagnósticos ou terapêuticos" (Parecer cit.).

 

Quanto ao número 1, e atendendo ao exposto supra, a Comissão adere ao articulado proposto , mas no entendimento e com as alterações a seguir sugeridas relativamente aos números 2 a 4. Este princípio funda-se na visão humanista de que a vida é um valor fundamental que é indisponível e na ideia base de que "Cada ser humano só pode dispor do seu corpo e do seu espírito na medida necessária para a sua humanização. Embora seja ele a escolher a via a seguir, há limites que não pode ultrapassar." (Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, Coimbra, 1992.).

 

Em resumo, a colheita e dádiva de órgãos não regeneráveis –recorde-se que já não a colheita para fins terapêuticos e diagnósticos – não deve, em princípio ser admitida, e com mais vigor ainda se coloca aqui esta premissa, especialmente de órgãos singulares essenciais.

 

Esta questão pode, no entanto, colocar problemas complexos quando, designadamente em nome da liberdade de consciência e de religião, alguém pretender sacrificar a sua vida por outrem; com as devidas adaptações, relembre-se o caso do padre Maximiniano Kolbe que, na Roma ocupada pelas tropas nazis, sacrificou a sua vida, sendo mais tarde elevado à santidade. E quantas vezes não preferiria uma mãe dar a sua vida por um filho através de, por exemplo, um transplante de coração? O legislador tem, no entanto, a ingrata tarefa de optar por uma solução, e à Comissão afigura-se ser esta a melhor solução.

 

Este sistema é adoptado em muitas das legislações consultadas. Assim, e a título exemplificativo, vejam-se os casos da Argentina, da Noruega, da Turquia e de Estados Australianos. Esta é, também, a linha pela qual seguem as directivas do Conselho da Europa.

 

Relativamente ao número 2, pergunta-se porquê a limitação pelo grau de parentesco até ao terceiro grau? Não parece haver razão que legitime, por exemplo, a não inclusão do cônjuge de facto como potencial dador.

 

Percebe-se aqui a tentativa de evitar uma possível comercialização de órgãos, partindo-se do pressuposto, por demonstrar, de que, fora os laços familiares, não haverá doações inter-vivos ditadas por razões estritamente humanitárias, de solidariedade social e de amizade profunda.

 

A Comissão entende que deve haver alguma prudência sim, mas não uma tal que, para além de poder fazer perigar a vida de outrem, seja susceptível de causar situações dramáticas por todos indesejáveis. Pensemos numa situação em que a/o companheiro/a conjugal de uma vida é um dador compatível de um rim, e, em face deste normativo estaria impedido de realizar-se o transplante capaz de salvar a vida do seu cônjuge de facto. Incorreriam esse dador, bem como o médico responsável e o receptor em responsabilidade criminal, nos termos dos artigos 19.º e 20.º da proposta? E, o estabelecimento hospitalar em outras sanções?

 

A Comissão entende, por conseguinte, flexibilizar e alargar o universo de dadores legítimos, substituindo a referência a" relação de parentesco até ao 3.º grau", por "relação especial atendível". Aqui se incluiriam, para além das relações de parentesco (tantas vezes mais lassas que outras relações como a amizade), a união de facto e outras cuja natureza assim o aconselhem no caso concreto como uma reconhecida amizade, ou outras desde que se prove haver histocom-patibilidade (lembra-se a situação descrita no início deste parecer ocorrida com uma religiosa espanhola).

 

Inadmissíveis devem ser todas as dádivas quando entre o doador e o receptor exista uma relação apenas reconduzível a temor reverencial, ou relações especiais de poder, como sejam as relações empregado/empregador, preso/funcionário de estabelecimento prisional, entre outros. Esta questão será, todavia, mais desenvolvida aquando da análise ao artigo 8.º que trata do consentimento.

 

Não se vai, pois, tão longe como outras soluções, designadamente a canadiana, que não impõe qualquer limite.

 

Sobre o número 3, muitas e complexas questões se colocam. Recorde-se o teor do preceito: " É sempre proibida a dádiva de substâncias não regeneráveis por parte de menores e incapazes." Trata-se, pois, de uma estatuição absoluta e não admite derrogações.

 

A este propósito vale a pena relatar um caso verídico ocorrido nos EUA:

 

"Jerry, de 27 anos, mas cuja idade mental era de 6, doou um rim ao seu irmão Tommy. O tribunal entendeu maioritariamente que devia ser autorizada a extracção do rim, considerando que o bem estar de Jerry seria mais afectado pela perda do seu irmão do que pela remoção do rim." (João Loureiro, ob.cit.).

 

Este caso permite, pelo discurso argumentativo utilizado pelo tribunal, abordar a questão numa outra perspectiva, como seja a do interesse do menor/incapaz doador, na própria doação, ou seja, nas situações em que os beneficiários de uma determinada transplantação não se resumam aos receptores, mas também aos dadores.

 

Assumindo como válida esta asserção, pergunta-se se, quando em questão esteja também um interesse do dador, não deverá a lei permitir, através de algum mecanismo cauteloso, a colheita e doação de órgãos não regeneráveis plurais por parte de menores e incapazes?

 

Parece à Comissão que sim, pelo que a redacção do número 3 deverá ser alterada no sentido de permitir uma excepção à regra, através de uma autorização judicial, que, deverá harmonizar-se com o regime estatuído no artigo 8.º relativo ao consentimento. Considerou-se que, além do consentimento das pessoas directamente interessadas, o tribunal, pelo seu distanciamento das emoções, poderá apreciar o acerto da solução e obstar às situações indesejáveis.

 

Um outro caso com interesse, e demonstrativo das virtualidades deste sistema de autorização judicial, ocorreu igualmente nos EUA (Paula Ribeiro de Faria, ob.cit.):

 

"No Estado de Louisiana, foi proposta uma acção pelo marido contra a mulher, por virtude da obtenção de consentimento para a colheita de um rim num filho do casal, a transplantar para um outro filho. O receptor seria uma filha de 32 anos e o dador um filho de 17 anos, mongolóide e com uma esperança de vida de vinte e cinco anos. O tribunal considerou ser de proteger o menor e que este não tinha qualquer interesse na intervenção. Mais adiantou que, a circunstância de a irmã poder, depois da morte dos pais, tomar conta deste irmão, era improvável e, enquanto vantagem, bastante longínqua".

 

Estes dois casos aqui apresentados reflectem, a um tempo, a complexidade do problema em causa, bem como a adequabilidade de fazer repousar sobre uma instância judicial a decisão última sobre um transplante de um órgão plural não regenerável.

 

No que toca ao número 4 deste artigo 6.º, a Comissão adere ao princípio estabelecido, designadamente pelas razões aduzidas aquando da análise ao número 1 deste mesmo artigo. No entanto, admite-se a dificuldade que poderá esta regra criar em determinado tipo de situações limite.

 

Com efeito, retome-se aqui o caso da religiosa espanhola, paradigmático para várias das questões envolvidas neste diploma, que, à face deste regime, não poderia nunca doar em vida os seus olhos, ainda que a sua esperança de vida fosse reduzida, e ainda que em nome da sua liberdade religiosa.

 

Uma outra situação que poderia não ficar permitida é a do recente caso ocorrido em Hong Kong, em que, uma conhecida Deputada doou um rim à sua filha de 18 anos. Envolverá, ou não, uma diminuição grave e permanente da integridade física e da saúde do dador? Segundo as opiniões médicas recolhidas, esta situação seria permitida com a redacção prevista para este normativo. Razão por que se optou por manter a redacção da proposta.

 

E, pergunta-se, seria admissível uma situação como a noticiada em Hong Kong, em que uma mãe doou uma parte do fígado para assim salvar a vida da sua filha?

 

28. – Artigo 7.º – (Informação) – A Comissão concorda com a regra constante da proposta de lei. Na verdade, o médico deve informar, quer o dador, quer o receptor, das consequências da dádiva, bem como de todos os efeitos secundários daí advenientes.

 

Este princípio é, aliás, comum às legislações específicas sobre esta temática, como, por exemplo, em Hong Kong, em Espanha, na Grécia, na Bélgica, na Dinamarca, na Noruega em França e em Portugal.

 

Igualmente, no plano internacional se estabelece este princípio, designa-damente a OMS, nos seus princípios directores.

 

De todo o modo, a Comissão considera dever introduzir algumas benfeitorias à redacção proposta. Assim, deve-se incluir antes de "dádiva", a "colheita", bem como "ou", antes de "tratamento".

 

Por outro lado, a Comissão considera que o preceito deve pronunciar-se expressa e detalhadamente sobre o conteúdo das informações a prestar aos dador e receptor, designadamente, chamando à atenção para as eventuais consequências psicológicas dos actos em questão. Aliás, esta preocupação é patente de forma expressa, entre outras, na legislação belga e espanhola.

Como reforço deste princípio/garantia de informação, a Comissão considera que deve ser aditado um número 2, que estipule que o médico deve procurar certificar-se que, dador e receptor, entenderam plenamente as consequências da operação em causa bem como de não ter, em sua consciência, dúvidas desse cabal entendimento. Vejam-se, entre outras, a legislação dinamarquesa e belga.

Finalmente, a Comissão sublinha a grande importância de facto que este preceito pode desempenhar, não apenas no esclarecimento das partes envolvidas, mas também na aferição do consentimento, que se pretende – além de esclarecido – livre, bem como, na detecção de eventuais situações de comercialização de órgãos.

Por aqui passará, certamente, o combate pela moralização dos transplantes de órgãos e tecidos de origem humana.

29. Artigo 8.º – (Consentimento) – Este artigo, referente ao consentimento para a colheita/dádiva em vida é um dos preceitos nucleares do diploma, e um dos que se afiguram como potencial gerador de controvérsia, maxime, quando lido em conjugação com o precedente artigo 6º.

Na verdade, pode afirmar-se que a problemática do consentimento é, nos transplantes inter-vivos, a mais complexa que se coloca ao legislador e aos médicos (Dieter Giesen, ob.cit., pág. 608).

 

Recorde-se que, sem o consentimento, estes actos médicos consubstanciariam a prática de crimes de ofensas corporais, nos termos previstos no Código Penal. Ora, o consentimento funciona, pois, como uma causa de afastamento ou exclusão da ilicitude.

 

A sua fonte imediata é o artigo 8.º da lei portuguesa, embora com algumas diferenças, sobretudo ao nível formal.

 

Relativamente ao número 1, a Comissão concorda com o princípio estabelecido de que o consentimento, quer do dador, quer do receptor, deve ser "livre, esclarecido e inequívoco".

 

Uma questão deixada em aberto pela proposta é a da forma do consentimento; com efeito, poderá esse consentimento revestir a forma oral? Ou, pelo contrário, será exigível forma escrita como revelação de um consentimento "inequívoco"? "Estamos a pensar, entre outras questões, na eventual necessidade de se estabelecer uma forma legal para a exteriorização do consentimento, no âmbito e alcance do esclarecimento médico acerca dos efeitos e consequências da dádiva..." (Paula Ribeiro de Faria, ob.cit., pág. 25).

 

A Comissão considera que, quanto à forma, o consentimento, –livre, esclarecido e inequívoco – , deverá revestir a forma escrita, quer da parte do dador, quer da parte do receptor. Esta éa solução, entre outros, da legislação belga, dinamarquesa, espanhola, bem como em Estados australianos.

 

Todavia, quanto a este último, ou seja o receptor, poderá essa forma não ser exigível, quando as circunstâncias do caso o não aconselhem. Pense-se, por exemplo, num transplante ditado por um acidente, e que não se compadeça com a redução a escrito, e o tempo necessário para tal, do consentimento.

 

Ainda relativamente ao número 1, a Comissão considera que um especial cuidado deverá ser colocado nas situações em que, entre o dador e o receptor exista uma relação pautada por temor reverencial, ou, noutras palavras, as chamadas relações especiais de poder.

 

Com efeito, se o consentimento há-de ser livre, logo se pergunta qual a efectiva liberdade na doação de um recluso ou de quem se encontre a prestar serviço militar (Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., pág. 27; Dieter Giesen, ob. cit., pág 610)? Refira-se, a propósito, a proibição legal expressa da legislação russa, quanto a transplantes entre dadores que estejam em situação de dependência do receptor, por virtude das suas funções ou por virtude de qualquer outra situação.

 

Pelo exposto, deve sublinhar-se que a coacção exercida sobre um determinado dador, terá de ser punida criminalmente, devendo merecer uma previsão expressa neste diploma.

 

O número 2 deste artigo estipula que "O consentimento do dador pode abranger a identificação do beneficiário". Este preceito corresponde à parte final do número 1 do artigo 8.º da lei portuguesa.

 

A Comissão, para além de considerar que a redacção poderia ser melhorada, ou seja, dizendo que o consentimento do dador pode identificar o beneficiário, como de resto faz o preceito português, interroga-se sobre a justificação do artigo proposto.

 

Na verdade, à luz da não comercialização de órgãos e tecidos de origem humana, e, relembrando que em causa estão transplantes inter-vivos, este número 2 poderá não fazer grande sentido. Com efeito, pense-se no regime estatuído no artigo 6.º, número 2, como reforço desta interrogação.

 

Ou seja, nas doações em vida será de permitir, como o faz "a contrario sensu" o número 2, a doação para pessoa indeterminada? Parece que não. Nas doações em vida, que deverão apenas ocorrer quando transplantes post mortem ou xenotransplantações se revelem inadequadas ou inacessíveis, estará sempre em causa o salvar de uma vida ou, pelo menos, o restaurar da saúde de determinada pessoa em concreto, e que, com o dador deva ter uma especial relação, designadamente familiar.

 

De contrário, a lei estaria a admitir a doação em vida de órgãos e tecidos para pessoa a nomear, o que contraria as boas orientações na matéria, e, por outro lado, a abrir, eventualmente, a porta a doações remuneradas, por exemplo como forma de construir uma reserva de órgãos.

 

Diferentemente se passarão as coisas nas doações post mortem.

 

O número 3, relativo às doações por parte de menores suscita da Comissão profundas reservas, quer quanto aos termos em que se encontra redigido, quer quanto ao regime que pretende introduzir.

 

A redacção proposta é a seguinte: "Tratando-se de dador menor, o consentimento é prestado pelos pais, desde que não inibidos do exercício do poder paternal, ou, em caso de inibição ou falta de ambos, pelo tribunal." Corresponde, quase literalmente, ao número 3 do artigo 8.º da lei portuguesa.

 

Não resultam muito claras as normas contidas neste preceito, devendo, pois, proceder-se a uma melhoria da sua redacção.

 

O preceito esquece também a existência de representantes legais do menor, por exemplo o tutor.

 

Ainda, nada se estabelece quanto às situações em que se verifique desacordo entre os pais do menor. A este propósito, recorda-se um caso ocorrido nos EUA, e já aqui mencionado:

 

"No Estado de Louisiana, foi proposta uma acção pelo marido contra a mulher, por virtude da obtenção de consentimento para a colheita de um rim num filho do casal...".

 

 

Face aos termos em que vem redigida a proposta, seria admissível uma situação como a que agora se relatou? Ou, pelo contrário, o não consentimento de um dos pais será bastante para a não admissão da colheita e posterior transplante? Que reflexos na família conjugal terá uma decisão judicial, qualquer que seja a resposta do tribunal, numa situação destas?

 

Convenhamos que nenhuma das soluções se afigura de fácil e imediata opção, mas, o legislador não se deve esquivar a este problema. A Comissão considera, e sem prejuízo do exposto a seguir, que deverá atribuir-se ao tribunal, entidade isenta, objectiva e distante do drama que se vive em cada e determinada situação, o dirimir de um conflito desta natureza, fazendo a necessária ponderação de bens em jogo "in casu".

 

Uma outra questão que preocupa a Comissão, e que não merece qualquer resposta no articulado proposto, é a oposição do menor. Na verdade, o sistema apresentado está, todo ele virado para o consentimento, esquecendo a eventual oposição do menor à colheita e dádiva de um seu órgão ou tecido.

 

A vulnerabilidade dos menores à exploração e manipulação éparticularmente problemática, e o preço a pagar pelo dador, em termos da sua saúde futura não deverão nunca ser ignorados (Dieter Giesen, ob.cit., pág. 611).

 

Assim, e para além da possível intervenção do tribunal, a recusa do menor deve sempre ser respeitada, e a revogação do seu consentimento deve, igualmente, ser sempre possível (Dieter Giesen, ob.cit., pág. 612.).

 

Em resumo, a Comissão considera dever proceder a duas alterações fundamentais ao regime proposto: por um lado, fazer com que a intervenção do tribunal seja sempre obrigatória, quando exista desacordo entre os progenitores e, pelo outro, a recusa do menor deve prevalecer sempre.

 

É óbvio que, ainda assim, as coisas não se afirmam agora claras e inequívocas. Basta recordar o caso, já aqui citado, de Anissa e Marissa...

Como nota final sobre este preceito, a Comissão recorda o disposto no artigo 1878.º, do Código Civil, que, sob a epígrafe "Conteúdo do poder paternal", estabelece, no seu número 1: "Compete, aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes...". Ora, uma doação de um órgão ou tecido afectará sempre, variando apenas o grau dessa afectação, a saúde do dador. Esta disposição civil confere aos pais um poder-dever (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, V vol., págs. 331 e 332).

Pode, no entanto, perguntar-se a qual dos interesses de qual dos filhos – dador ou receptor – deverão os pais atender?

No que respeita ao número 4, e sem esquecer o que atrás se deixou escrito, a Comissão considera imprudente a estatuição firme de uma dada idade, no caso 14 anos, para fazer invocar a disciplina deste preceito. Aliás, a correspondente norma da lei portuguesa, opta, e bem, por uma - "capacidade de entendimento e de manifestação de vontade", bem mais flexível e menos amputadora dos direitos do menor.

Ademais, mal se compreende que, por exemplo, umas criança de 7 anos seja considerada capaz para intervir em processos judiciais que a outros respeitam, vidé artigo 617.º, alínea c), do Código de Processo Civil, e, não seja considerado apto para decidir da sua saúde.

Relativamente ao número 5, que versa a doação por maiores incapazes por razões de anomalia psíquica, a Comissão adere ao articulado que vem proposto, pelas mesmas razões justificativas da alteração que sugere para o regime de doação de órgãos e tecidos por parte dos menores.

Sobre o número 6, que estabelece a prestação de consentimento perante médico não pertencente à equipa de transplantação, a Comissão concorda com o articulado constante da proposta. Com efeito, por razões de transparência, bem como por uma desejável salvaguarda do médico e, mesmo da instituição onde se efectua a operação, o sistema preconizado é o que se afigura mais adequado.

Este regime é o que vigora, entre outros, em Portugal, em Espanha e na Finlândia.

Finalmente, no que tange ao número 7, a Comissão concorda com o que vem proposto, ou seja, a possibilidade de o dador poder revogar livremente o consentimento dado. Esta é a orientação geral das legislações a que tivemos acesso.

A Comissão considera, no entanto, que, por uma questão de clareza e consequente reforço dos direitos do dador, se deve mencionar expressamente que a revogação pode ser feita a todo o tempo. Quanto a estes aspectos, vejam-se, entre outros, os exemplos espanhol, australianos, canadianos, belga e de Hong Kong

Por outro lado, a Comissão entende que neste normativo se deverá incluir o receptor. Não deve, no entanto, distrair-se da dificuldade que um preceito destes pode colocar quando, por exemplo em nome de uma motivação religiosa, um receptor, ou seu representante, revogue o consentimento – ou não o dê sequer. Neste tipo de situações, poderá fazer-se funcionar o mecanismo de inibição do poder paternal, quando o receptor for menor.

30. – Artigo 9.º – (Direito a assistência médica e indemnização) – Sobre este artigo, a Comissão manifesta a sua concordância com os princípios estabelecidos, que são inspirados no correspondente artigo da lei portuguesa.

No que respeita ao número 1, a Comissão concorda com a redacção preconizada, desde logo por uma questão de justiça e razoabilidade para com o dador.

Quanto ao número 2, a Comissão dá o seu acordo ao princípio estabelecido, de acordo, aliás, com princípio apontado pelo Conselho da Europa. Relembra-se, apenas, o estatuído no número 2 do artigo 5.º. Na verdade, a não ser assim, uma vez mais se poderiam abrir as portas à comercialização de órgãos e tecidos de origem humana.

Relativamente ao número 3, que impõe a constituição de um seguro a favor do dador, para os efeitos dos números anteriores, suportado pelo estabelecimento hospitalar, a Comissão procurou indagar sobre a viabilidade efectiva de tal medida. Até ao momento, as respostas recebidas não foram, na verdade, animadoras.

O contrato de seguro é, como se sabe, uma transferência de responsabilidade, e, nesta situação, a Comissão é de opinião que, se for possível e praticável, o estabelecimento hospitalar deverá, por meio de um contrato de seguro, transferir, a expensas suas, a responsabilidade para uma entidade seguradora, por forma a não deixar a descoberto os danos sofridos por quem, altruisticamente, se disponibilizou a salvar uma vida ou a restaurar a saúde de outrem. A este propósito, veja-se o artigo 9.º da Resolução 78 do Conselho da Europa.

31. – Artigo 10.º – (Dadores) – Este artigo abre o Capítulo III relativo à colheita em cadáveres e representa, por comparação com o regime português, alteração radical em toda a filosofia enformadora do diploma nesta sensível matéria.

Com efeito, o sistema aqui divisado caracteriza-se pela necessidade de consentimento, ou seja, e conforme já referido em sede de apreciação na generalidade, a simples não manifestação de oposição não legitima qualquer extracção para qualquer fim. Este sistema é referenciado, na terminologia da commom law, por opting-in system.

 

A Comissão tem plena consciência de que, ao aderir à proposta do Executivo, está a reduzir substancialmente o número de órgãos disponíveis para eventuais transplantações; na verdade, o efeito de uma medida legislativa como esta, tem sempre um efeito crucial nas futuras transplantações (Ian Kennedy, ob.cit., pág. 241).

 

Analisada a proposta, e ponderados os seus efeitos, bem como os efeitos advenientes da adopção em Macau de um sistema como o português, a Comissão adere ao que vem preconizado pelo Executivo.

 

Desde logo, por uma razão de natureza prática, que se traduz nas informações médicas recolhidas de que não há, nem tão cedo haverá, condições técnicas e humanas para efectuar muitos dos potenciais transplantes post mortem. A complexa cadeia de eventos necessários a uma transplantação, cifra-se em cerca de vinte frágeis momentos diversos (Dieter Giesen, ob.cit., pág. 615).

 

Por outro lado, e como é afirmado na Exposição de Motivos, "A dádiva post mortem é admitida apenas mediante a manifestação expressa da vontade do dador, feita em vida, e livremente revogável... . Julga-se, com efeito, que a solução proposta é a que mais se adequa e respeita os valores sociais e éticos da comunidade em que vai ser aplicada a lei e a única que, por isso mesmo, será aceite no seio dessa comunidade."

 

Finalmente, a Comissão considera que esta solução é a que respeita a liberdade de autodeterminação de cada um.

 

O modelo preconizado vigora, entre outros, na Argentina, na Malásia, nas Filipinas e em Hong Kong.

 

No que respeita ao número 1, a Comissão concorda com o que está preconizado, sem prejuízo de algumas melhorias de redacção. Assim, deve utilizar-se o singular no sujeito, e por outro lado, na sequência do atrás exposto sobre o artigo 2.º, eliminar-se a referência a residentes de Macau.

 

Deve criar-se um novo número 2 no sentido de considerar dador também aquele que, de forma escrita e inequívoca assim o tenha declarado, v.g. em testamento. Em conformidade, devem renumerar-se os números seguintes.

 

No que tange ao número 2 da proposta, a Comissão manifesta a sua concordância, pela razoabilidade e economia da solução.

 

Relativamente ao número 3, a Comissão adere ao que vem proposto, designadamente para dar guarida à vontade expressa do dador post mortem. Esta solução está presente em várias legislações como, por exemplo, nas Filipinas e em Hong Kong.

 

Pela mesma razão, a Comissão é de parecer que a disponibilidade para a dádiva de órgãos após a morte deve poder também ser condicionada quanto aos beneficiários, ou seja, deve admitir-se que o dador possa fazer depender a colheita em função de um destinatário. E, a ser assim, deve alargar-se o leque de eventuais beneficiários aos estabelecimentos autorizados para efectuar transplantes e investigação. Este tipo de normas existe em várias legislações, designadamente nos EUA, em Singapura e nas Filipinas.

 

Quanto ao número 5, e tendo em consideração o exposto supra, a Comissão sugere o aditamento de "ou por outro meio idóneo e inequívoco", após "seguinte".

 

Finalmente, e no intuito de permitir alargar o universo de dadores que se apresentará previsivelmente limitado, a Comissão considera que deve aditar-se um número mais a este artigo. Este novo número viria permitir que os familiares tivessem legitimidade para, no silêncio em vida do próprio e no desconhecimento de uma eventual oposição sua a dádivas post mortem, autorizar colheitas de órgãos e tecidos.

 

Este sistema é o que vigora em Hong Kong, na Malásia, no Reino Unido, entre vários outros, e permitirá como se disse, a par de outras pequenas alterações agora sugeridas, alargar o leque de dadores sem, no entanto, bulir com o sistema de consentimento preconizado.

 

32. – Artigo 11.º – (Registo de dadores) – Sobre este preceito, que prevê a criação de um registo de dadores, bem como os seus elementos essenciais, a Comissão concorda, sem prejuízo de algumas sugestões de natureza formal.

 

Assim, quanto ao número 1, deve substituir-se "Deve ser", por "É". Por outro lado, entende-se que a criação deste registo deve ser efectuada desde logo por este diploma legal, pelo que se deve eliminar a expressão "por portaria do Governador".

 

No número 2, deve então estatuir-se que "O registo é regulamentado por portaria do Governador, da qual deverá constar:", mantendo-se inalteradas as várias alíneas.

 

33. – Artigo 12.º – (Certificação da morte) A Comissão manifesta a sua concordância quanto aos números 1 e 2 da proposta de articulado. Estes dois números foram, de resto, influenciados por preceitos da lei portuguesa, contidos nos artigos 12.º e 13.º.

 

Relativamente ao número 2, a Comissão sublinha a importância deste preceito, desde logo para salvaguarda do médico, atentos os interesses de sobrevivência dos pacientes. Esta regra consta dos princípios directores da OMS, bem como da já citada Resolução do Conselho da Europa e na Declaração de Madrid da Associação Médica Mundial. Do mesmo modo está presente em muitas legislações nacionais como, por exemplo nas Filipinas, no Canadá e no Sri Lanka.

 

No que respeita ao número 3, a Comissão manifesta profundas reservas ao regime proposto.

 

Com efeito, não se afigura como adequada a decretação de critérios de estabelecimento da morte por um despacho do Governador. Desde logo pela natureza do acto em questão que pressupõe o exercício de uma função administrativa. Por outro lado, e tendo em consideração os vertiginosos avanços da medicina, o procedimento de expedição de um despacho pode revelar-se demasiadamente lento, e capaz de gerar eventuais acertos técnico-jurídicos que poderão alterar critérios médicos, ainda que não intencionalmente.

 

É verdade que alguns dos problemas apresentados poderão ser minorados pelo regime preconizado de consagrar uma reserva de iniciativa ao director dos SSM, ouvidos os Conselhos Médicos existentes.

 

Este sistema ainda assim não colhe os favores da Comissão. Com efeito, verifica-se que os ditos Conselhos Médicos – Conselho Médico e de Enfermagem dos Cuidados de Saúde Primários, Conselho Médico (cuidados de saúde diferenciados), previstos nos artigos 14.º e 26.º, do Decreto-Lei n.º 29/92/M, de 8 de Junho – são constituídos apenas por pessoal dos SSM, o que não se afigura adequado atenta a matéria em questão.

 

Por outro lado, se é verdade que podem apreciar aspectos do exercício profissional que envolvam princípios deontológicos, também lhes é cometido dar parecer sobre horários de funcionamento, actos de gestão de pessoal e exercício do poder disciplinar. ora, também por este motivo não parece que a estes conselhos se deva cometer a tarefa que no artigo em questão lhe está destinada.

 

A solução ideal, na opinião da Comissão, seria a de cometer a definição destes critérios e regras a uma associação pública dos médicos, como acontece em Portugal e em todos os países que conhecem este modelo de organização da profissão médica. A mesma opinião nos foi dada no parecer aqui citado, "É de endossar, logo que possível, a definição de critérios e regras de semiologia médica à Ordem dos Médicos ou seu equivalente no Território".

 

A não ser possível a concretização, em tempo útil, de tal desiderato – como parece não ser – a Comissão considera que deve ponderar-se a criação de uma Comissão de Ética para as Ciências da Vida, inspirado no Conselho criado em Portugal (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, AR, Lisboa, 1990, com parecer da CACDLG da AR).

 

Assim, e não sendo possível optar pela solução ideal (Associação Pública Profissional), a Comissão sugere o estabelecimento da Comissão de Ética para as Ciências da Vida, que poderá funcionar no seio dos Serviços de Saúde, enquanto entidade competente para a elaboração de regras e emissão de pareceres sobre as complexas matérias em questão.

 

Não se pretende criar uma nova e pesada estrutura da Administração, mas sim obviar a que matérias tão técnicas e sensíveis, não sejam decididas por médicos. Por outro lado, esta entidade não terá de estar constantemente reunida, porquanto, a sua tarefa não pressupõe o desenvolvimento constante de actividades, designadamente executivas.

 

Finalmente, a Comissão é de parecer que a definição da composição e da competência desta entidade deva ser cometida ao Governador. Assim, deve aditar-se um novo artigo no capítulo das disposições finais e transitórias.

 

34. - Artigo 13.º – (Execução da colheita) – Sobre este artigo, inspirado na lei portuguesa, a Comissão manifesta a sua concordância quanto aos vários números propostos.

 

No entanto, deve aditar-se um novo número 4 estabelecendo que, mutilado ou dissecado o cadáver, se deva proceder à sua restauração, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana (João Loureiro, ob.cit., pág. 38). Esta regra consta, entre outras, na legislação italiana, suíça e norteamericana.

 

35. – Artigo 14.º – (Auto de execução de colheita) – Sobre este preceito, a Comissão concorda com o articulado proposto, sem prejuízo de uma alteração à alínea c) , do número 1, ditada por opções entretanto tomadas pela Comissão aquando da apreciação de artigos precedentes.

 

Com efeito, na alínea c) deve aditar-se "ou de outros elementos relevantes."

 

36. – Artigo 15.º – (Responsabilidade) – Este artigo abre o capítulo IV dedicado às sanções. A Comissão manifesta, desde já, o seu acordo quanto à previsão de desejáveis normas sancionatórias específicas. Aliás, esta era, afinal, a tradição da legislação portuguesa, só recentemente abandonada com a lei de 1993.

 

Esta opção é seguida, de resto, em muitas das legislações consultadas, como se referiu já em sede de apreciação na generalidade.

 

A primeira nota a reter é a da manutenção, em determinadas situações, que não em todas (Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1991, págs. 463 e 464), da aplicabilidade de normas incriminatórias do Código Penal recentemente aprovado, designadamente, os artigos 144.º (intervenção ou tratamento médico-cirúrgico), 150.º (intervenção ou tratamento médico-cirúrgico arbitrário), 151.º (dever de esclarecimento) e 271.º (recusa de médico).

 

Uma outra questão a sublinhar é a da manutenção da possibilidade de aplicação cumulativa de pena de prisão e de multa, diferentemente do que se passa no Código Penal, porquanto se considera, atenta a natureza dos ilícitos e dos bens que se pretende proteger, ser esta a solução mais adequada e eficaz do ponto de vista da prevenção.

 

Em resumo, e pelo atrás exposto, a Comissão manifesta a sua concordância com o proposto artigo 15.º.

 

37. Artigo 16.º – (Homicídio para colheita de órgãos e tecidos) A Comissão manifesta a sua concordância com o estabelecido neste preceito.

 

Na verdade, afigura-se de todo justificada a qualificação do homicídio cometido com o propósito de colher órgãos ou tecidos. A pena aplicável é de, recorde-se, 15 a 25 anos.

 

38. – Artigo 17.º – (Comércio de órgãos ou tecidos) – Este artigo vem dar resposta, pelo sancionamento, a uma das linhas enformadoras deste diploma, ou seja, a gratuitidade das colheitas de órgãos e tecidos de origem humana para fins de transplante e científicos.

 

Esta criminalização corresponde a uma das necessidades mais sentidas, designadamente em Portugal (Antônio Carvalho Martins, A colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres, pág. 77), e representa, como foi já mencionado, uma importante melhoria face à lei portuguesa.

 

No que toca ao número 1, a Comissão entende que deve aditar ", no território," entre "Quem" e "comprar", porquanto se deve deixar claro que a lei de Macau não é competente para intervir em situações ocorridas fora do território.

 

A Comissão considera que, de harmonia com o exposto a propósito do artigo 50, deve aditar-se um número 3 que preveja e puna a publicidade relativa à comercialização de órgãos e tecidos.

 

Na verdade, e não olvidando exemplos próximos, com que legitimidade, e com que moralidade se proíbe a comercialização de órgãos em Macau, se a população se deparar com publicidade à venda de órgãos em locais bem acessíveis?

 

Em resumo, deve proibir-se e punir-se quer a comercialização, quer a publicidade de comercialização de órgãos, mesmo que essa publicidade tenha como local de referência um local externo ao território.

 

Esta proibição de publicidade está prevista e punida, entre outros, em Hong Kong, com penas pecuniárias entre 10000 e 25000 HKD, e pena de prisão até um ano, em Singapura, na Argentina e no Reino Unido.

 

Este novo número 3 teria a seguinte redacção: "Quem, por qualquer meio, fizer publicidade ou permitir que ela se faça, relativa a actos previstos no número 1, ainda que concretizáveis fora do território, é punido com pena de prisão até 3 anos e multa até 360 dias.

 

A Comissão é de parecer que a tentativa deve ser punível; por conseguinte, adita-se um número 4 com essa previsão.

 

Finalmente, introduzem-se algumas benfeitorias técnicas na redacção da alínea a) do n.º 2, desde logo por uma questão de harmonização com a parte geral do Código Penal.

 

39.- Artigo 18.º – (Remuneração por dádiva) – No que respeita ao artigo proposto, a Comissão manifesta a sua concordância com o princípio estabelecido.

 

Todavia, sugerem-se algumas alterações. Assim, do mesmo modo que se introduziu a expressão "no território" no artigo precedente, se repete o aditamento.

 

Por outro lado, a Comissão entende que a violação do número 4 do artigo 5.º, constitui conduta com a mesma censurabi1idade, pelo que deve aditar-se essa previsão na redacção que vem proposta.

 

Finalmente, e também pelas mesmas razões já aduzidas, deve introduzir-se um número 2 que preveja a punibilidade da tentativa.

 

40. – Artigo 19.º – (Colheitas e transplantações ilícitas) – Sobre este artigo, e sem prejuízo de uma adesão de princípio, a Comissão discorda de algumas das soluções preconizadas.

Com efeito, não parece devidamente ponderada a diversidade de bens jurídicos lesados, ou seja, a violação das disposições do artigo 6.º, por exemplo quando se efectue colheita de órgão não regenerável plural (um rim), apresenta-se como merecedora de uma punição mais gravosa do que as situações previstas nas alíneas a) e b), do número 2.

Nesta conformidade, a Comissão é de parecer que a punição prevista no número 1, bem como a prevista na alínea c), do número 2, deverá ser agravada. Esta agravação consubstanciar-se-á em pena de prisão até 3 anos e multa até 360 dias.

Por outro lado, deve introduzir-se a previsão de que a tentativa é punível.

A Comissão considera que deve introduzir-se previsão expressa de crime de coacção para fins de obtenção de consentimento, previsto no artigo 8.º, com remissão para os artigos do Código Penal relativos à coacção e coacção grave, ou seja, artigos 148.º e 149.º.

Introduzem-se ainda algumas alterações ditadas por uma tentativa de melhoria técnica dos preceitos deste artigo.

Assim, todas as referências a "participação", "auxílio" e outras similares, são retiradas. Em contrapartida, é aditado um novo número 4 que trata especificamente da matéria da cumplicidade, sendo a sua redacção inspirada pelo artigo 26.º do Código Penal. E assim se consegue uma desejável harmonização com a lei penal fundamental, bem como a justa diferenciação da moldura penal aplicável a autor e a cúmplice.

Por outro lado, a Comissão é de parecer que se deve retirar o preceito que propõe que o procedimento criminal dependa de queixa. Na verdade, atenta a gravidade dos ilícitos em questão, mal se compreende que estes crimes não revistam a natureza de crime público. Ademais, são facilmente perspectiváveis situações em que ao ofendido seja difícil intentar a queixa criminal. Com esta alteração, esse papel poderá ser desempenhado autonomamente pelo Ministério Público.

41. – Artigo 20.º – (Penas acessórias) – A Comissão, sem prejuízo de concordância no restante, manifesta alguma perplexidade quanto a uma das soluções previstas na proposta de lei, e, por outro lado, propõe uma outra alteração ao articulado preconizado.

 

Na verdade, o disposto na alínea c) afigura-se desmedido, porquanto prevê, sem mais, o encerramento por período que pode ir até aos dois anos, dos estabelecimentos onde for efectuada a colheita ou a transplantação em contravenção do disposto no artigo 3.º. Ora, neste artigo são exigidos requisitos vários como, por exemplo, a responsabilidade e directa vigilância médica na prática dos actos em questão. Imaginando agora, por mera hipótese de raciocínio, que, no Hospital Conde de São Januário era efectuada uma colheita sem aquela responsabilidade e directa vigilância médica, corríamos o risco de nos vermos todos privados daquela unidade hospitalar durante dois anos ...

Manifestamente, não pode ser esta a ratio legis do articulado proposto. De contrário, a ponderação de bens efectuada revelar-se-ia despropositada.

Nesta conformidade, e tentando conseguir um conteúdo útil ao preceito, a Comissão propõe que a medida acessória de encerramento apenas se aplique àqueles estabelecimentos não autorizados a efectuar estes actos médicos.

No que respeita à alínea b), a Comissão entende dever alterar o período de interdição até 3 anos por período não inferior a 1 e não superior a 5 anos. Veja-se, a este respeito, o artigo 92.º do Código Penal.

42. – Artigo 21.º – (Outras infracções) – A Comissão concorda com o articulado previsto, sem prejuízo das sugestões a seguir alinhadas.

No que respeita ao montante das multas previstas, a Comissão sugere, para uma maior eficácia destas medidas, a elevação para o dobro dos montantes máximos propostos.

Relativamente ao número 2, a Comissão é de parecer que deve aditar-se, na parte final do preceito, uma referência que estatua a responsabilidade solidária daqueles administradores e directores, por forma a garantir mais eficazmente o desiderato pretendido.

Em conformidade, adita-se o seguinte, "...ficando solidariamente responsáveis por qualquer indemnização atribuída ao lesado.".

43. – Artigo 22.º – (Entrada em vigor) – Sobre este preceito, nada mais se oferece dizer, para além da alteração a introduzir em consequência da opção a tomar quanto ao artigo 12.º, número 3.

 

IV

Outras Questões

 

44. A Comissão entende dever aditar um novo preceito, que passará a ser o artigo 2.º, sobre a "dissecação da cadáveres para fins de ensino e investigação".

 

Na verdade, é consabido que o cadáver representa, do ponto de vista anatómico, uma insubstituível fonte de tecidos e órgãos, de elevado interesse terapêutico, de ensino e de investigação médica.

 

De resto, esta ideia foi sublinhada pelos médicos que colaboraram com a Comissão.

 

Propõe-se assim admitir expressamente a disponibilidade expressa da pessoa, no sentido de permitir que o cadáver seja utilizado para estes fins. Propõe-se, igualmente, que cadáveres não reclamados legitimamente para exéquias, possam ser utilizados para estes fins.

 

O regime que se sugere é o da aplicação das restantes regras do presente diploma, sem prejuízo de algumas regras específicas.

 

45. A Comissão entende, como já atrás mencionado, aditar um preceito, que seria o número 3, do artigo 1º, a mencionar expressamente a admissibilidade das xenotransplantações.

 

46. Analisada a parte sancionatória da proposta, e passada em revista a parte especial do Código Penal, conclui-se pela ausência de um tipo criminal relativo à colheita em cadáveres sem estarem preenchidos os pressupostos previstos no diploma.

 

Ora, é pouco curial e pouco consequente revestir a disponibilidade post mortem de apertados mecanismos, e não sancionar quem viole esses mesmos mecanismos protectores.

 

E com mais agudeza se sente o problema quando se opta pelo sistema da prestação de consentimento expresso.

 

Pelo exposto, a Comissão sugere o aditamento dum preceito a criminalizar as condutas que violem os pressupostos da colheita em cadáveres.

 

47. Articulado anexo – Por comodidade de referência, em anexo segue um articulado contendo todas as alterações sugeridas em virtude do presente Parecer, designadamente os aditamentos, supressões e renumerações.

 

Para uma mais imediata apreensão das alterações sugeridas pela Comissão, os aditamentos e as novas redacções estão identificadas em negrito – bold –; por seu turno, as eliminações estão assinaladas do seguinte modo: (...).

 

V

Conclusões

 

48. Em conclusão, a CACDLG é de parecer que:

 

a) a proposta de lei em apreciação reúne os requisitos formais e substanciais para ser apreciada em Plenário;

 

b) deve, todavia, fazer uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 131.º do Regimento; e,

 

c) deve fazer-se uso da faculdade conferida pelo artigo 37.º, n.º 2 do EOM.

 

Macau, aos 1 de Abril de 1996.

 

A Comissão, Jorge Neto Valente, Presidente – Alberto Noronha – José Rodrigues do Rosário – Ma Man Kei – Susana Chou.

 


 

 

Lei N.º /95/M

de    de

 

Regulamenta a dádiva, a colheita e a transplantação

de órgãos e tecidos de origem humana.

 

A Assembleia Legislativa decreta, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 30.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Orgânico, para valer como lei, o seguinte:

 

CAPÍTULO I

Disposições Gerais

 

Artigo 1.º

(Âmbito material de aplicação)

1. A presente lei estabelece as normas ( ... ) a observar nos actos que tenham por objecto a dádiva e a colheita de órgãos ou tecidos de origem humana, para fins terapêuticos de diagnóstico ou de transplantação, bem como nas próprias intervenções de transplantação.

2. Excluem-se do âmbito (...) desta lei:

a) A colheita e transfusão de sangue;

b) A dádiva de óvulos e de esperma;

(...)

c) A colheita, transferência e manipulação de produtos de fecundação e embriões.

3. O presente diploma aplica-se, com as necessárias adaptações, às xenotransplantações.

 

Artigo 2º

(Dissecação de cadáveres para fins de ensino e investigação)

1. À dissecação de cadáveres humanos para fins de ensino e de investigação científica e de investigação da aplicação terapêutica aplicam-se as regras do presente diploma, sem prejuízo do número seguinte.

 

2. É lícita a dissecação de cadáveres humanos sempre que:

 

a) A pessoa haja manifestado em vida a disponibilidade de que o seu cadáver seja utilizado para qualquer dos fins a que se refere o número 1;

 

b) O corpo da pessoa não seja legitimamente reclamado para exéquias, no prazo de dois meses após se ter verificado a morte, ainda que essa pessoa não tenha manifestado em vida a vontade de que o seu corpo fosse utilizado para esses fins.

 

Artigo 3.º

(Estabelecimentos autorizados)

1. Os actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º e no artigo 2.º, só podem ser realizados em estabelecimentos hospitalares, autorizados para o efeito ( ... ) sob a responsabilidade e directa vigilância médica e de acordo com as respectivas "leges artis".

 

2. Somente os médicos autorizados ( ... ), a exercer a respectiva profissão (...) podem assumir a responsabilidade referida no número anterior.

 

Artigo 4.º

(Confidencialidade)

É proibido revelar a identidade do dador ou do receptor de órgãos ou tecidos, salvo consentimento expresso do próprio ou, tratando-se de pessoa falecida, do cônjuge, dos filhos ou dos pais, por esta ordem.

 

Artigo 5.º

(Gratuitidade)

1. A dádiva de órgãos e tecidos de origem humana não pode, em circunstancia alguma ser remunerada, sendo proibida a sua comercialização.

(...)

 

2. É proibida em Macau a publicidade à comercialização de órgãos e tecidos de origem humana.

 

3. É proibido reembolsar o dador, o receptor ou terceiro de quaisquer despesas ou encargos imediatamente resultantes ou que tenham tido como causa directa os actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 9.º.

 

4. Os autores dos actos referidos no n.º 1 do artigo 1.º e os estabelecimentos hospitalares referidos no n.º 1 do artigo 3.º podem perceber uma remuneração pelo serviço prestado, mas no cálculo desta remuneração não pode ser atribuído qualquer valor aos órgãos ou tecidos que forem objectos de intervenção.

 

 

CAPÍTULO II

Colheita em vida

 

Artigo 6.º

(Admissibilidade)

 

1. Apenas são permitidas as colheitas em vida de substâncias regeneráveis, se com finalidades terapêuticas de transplantação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

 

2. É admitida a dádiva de órgãos ou substâncias não regeneráveis quando houver entre o dador e o receptor relação especial atendível.(...)

 

3. É sempre proibida a dádiva de substâncias não regeneráveis por parte de menores ou incapazes, salvo autorização judicial.

 

4. É igualmente proibida a dádiva que, com elevado grau de probabilidade, envolva a diminuição grave e permanente da integridade física e da saúde do dador.

 

Artigo 7.º

(Informação)

 

1. O médico deve informar, de modo leal, adequado e inteligível, o dador e o receptor dos riscos possível, das consequências da colheita, da dádiva ou do tratamento e dos seus efeitos secundários, bem como dos cuidados a observar após as operações de colheitas e transplantação e eventuais consequências psicológicas.

 

2. O médico deve procurar certificar-se de que o dador e o receptor entenderam plenamente os efeitos dos actos referidos no número anterior, bem como da não existência de qualquer remuneração envolvida em acordo entre o dador e o receptor.

 

Artigo 8.º

(Consentimento)

1. O consentimento do dador e do receptor deve ser livre, esclarecido e inequívoco, devendo constar de documento escrito, salvo se as circunstâncias do caso o não permitam quanto ao receptor.

 

2. Tratando-se de dador menor, o consentimento é prestado pelos progenitores, ou pelo tutor quando os progenitores se encontrem inibidos do exercício do poder paternal, e dependente sempre da não oposição do menor; (...) havendo desacordo entre os progenitores, o consentimento depende ainda de autorização judicial.

 

3. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a dádiva de órgãos e tecidos de menor com capacidade de entendimento e de manifestação de vontade, (...) depende também da concordância expressa deste.

 

4. Tratando-se de colheita em maiores incapazes por razões de anomalia psíquica depende de autorização judicial e da não oposição do incapaz.

 

5. O consentimento é prestado perante médico não pertencente à equipa de transplantação, designado pelo director do estabelecimento onde a colheita se vai realizar.

 

6. O consentimento do dador ou de quem legalmente o represente é livremente revogável a todo o tempo até à execução do acto, e por qualquer forma inequívoca.

 

Artigo 9.º

(Direito a assistência médica e indemnização)

1. O dador tem direito a assistência médica até ao seu completo restabelecimento.

 

2. O dador tem ainda direito a ser indemnizado pelos danos resultantes da colheita, independentemente de culpa, sua ou de terceiros.

 

3. A responsabilidade prevista nos números anteriores recai sobre o estabelecimento hospitalar onde é efectuada a colheita, podendo, no entanto, a expensas suas, transferi-la para entidade seguradora, nos termos da lei.

CAPÍTULO III

Colheita em cadáveres

 

Artigo 10.º

(Dadores)

1. É considerado como dador para depois da morte, (...) quem, por si ou através dos seus representantes legais, haja manifestado a sua disponibilidade para a dádiva junto dos Serviços de Saúde de Macau.

2. É também considerado dador para depois da morte quem, por escrito e inequivocamente assim o tenha declarado.

3. À disponibilidade para a dádiva é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 8.º.

4. A disponibilidade para a dádiva pode ser limitada a certos órgãos ou tecidos e a certos destinatários.

5. A qualidade de dador para depois da morte é comprovada através do cartão individual referido no artigo seguinte, ou por outro meio idóneo e inequívoco.

6. Os familiares do falecido podem, na falta dos elementos referidos no número anterior, e desde que não tenham conhecimento de oposição daquele, permitir a colheita de órgãos e tecidos.

 

Artigo 11.º

(Registo de dadores)

1. É criado( ... ) um registo de dadores para depois da morte.

2. O registo é regulamentado por portaria do Governador, da qual deverá constar:

a) O tipo de registo;

b) Os elementos de identificação do dador e de informação que o registo pode conter;

c) As condições de acesso e de utilização do registo;

d) A entidade responsável pela criação, manutenção e segurança do registo;

e) O modelo do cartão comprovativo da qualidade de dador.

 

Artigo 12.º

(Certificação da morte)

1. Para efeitos de colheita, a verificação da morte cerebral é efectuada utilizando os critérios e regras de semiologia médico-legal que, de acordo com os progressos científicos, são considerados idóneos para essa certificação.

 

2. Na verificação da morte não deve intervir médico que integre a equipa de transplantação.

 

3. Os critérios e regras referidos no nº1 são propostos ( ... ) pela Comissão de Ética para as Ciências da Vida, e homologados por despacho do Governador.(...)

 

Artigo 13.º

(Execução da colheita)

1. A colheita é realizada por uma equipa médica designada pelo director do estabelecimento onde a mesma se efectuar.

 

2. Na execução da colheita devem evitar-se mutilações ou dissecações não estritamente indispensáveis à recolha e utilização de tecidos ou órgãos, bem com as que possam prejudicar a realização de autópsia, quando a ela haja lugar.

 

3. Sempre que o cadáver tenha sido mutilado ou dissecado, deve, na medida possível, proceder-se à sua restauração.

 

4. O facto de a morte se ter verificado em circunstâncias que, nos termos da lei, imponham a realização de autópsias médico-legais, não impede a realização da colheita, devendo, contudo, os médicos relatar ( ... ) toda e qualquer observação que considerem útil para completar o relatório da autópsia.

 

Artigo 14.º

(Auto de execução da colheita)

1. Os médicos que procedem à colheita devem lavrar um auto, em duplicado, de onde conste:

 

a) A identidade do falecido;

 

b) O dia e a hora da verificação da morte;

 

c) A menção da consulta do registo de dadores para depois da morte e do cartão individual do dador, ou de outros elementos relevantes;

d) A identificação dos médicos intervenientes na operação;

e) A indicação dos órgãos e tecidos recolhidos e o respectivo destino.

2. O auto a que se refere o número anterior deve ser assinado pelos médicos intervenientes e pelo director do estabelecimento onde se realizar a colheita, sendo um dos exemplares arquivado neste estabelecimento e o outro remetido aos Serviços de Saúde de Macau.

 

CAPITULO IV

Sanções

 

Artigo 15.º

(Responsabilidade)

Os infractores das disposições desta lei incorrem em responsabilidade penal nos termos previstos nos artigos seguintes e na legislação penal geral, e em responsabilidade civil e disciplinar nos termos gerais de direito.

 

Artigo 16.º

(Homicídio para colheita de órgãos ou tecidos)

Ao homicídio cometido com o propósito de colher órgãos ou tecidos do cadáver, é aplicável a pena prevista na lei para o homicídio qualificado.

 

Artigo 17.º

(Comércio e publicidade de órgãos ou tecidos)

1. Quem, no território, comprar ou vender ou, de qualquer outra forma, pagar ou receber qualquer quantia pela obtenção ou entrega de órgãos ou tecidos do corpo de outrem é punido com pena de prisão até 3 anos e multa até 360 dias.

2. Na mesma pena incorre:

a) Quem ( ... ) determinar outrem, desde que haja execução ou começo do facto, por qualquer forma, a exigir ou oferecer o pagamento de órgãos ou tecidos;

b) Quem fundar, financiar, dirigir ou representar associação de indivíduos destinada a promover ou fazer comércio de órgãos e tecidos.

3. Quem, por qualquer meio, fizer publicidade, ou permitir que ela se faça, relativa a actos previstos no número 1, ainda que concretizáveis fora do território, é punido com pena de prisão até 3 anos e multa até 360 dias.

4. A tentativa é punível .

 

Artigo 18.º

(Remuneração por dádiva)

Quem, no território, cobrar ou pagar qualquer remuneração pela dádiva de órgãos ou tecidos ou efectuar ou aceitar o reembolso de despesas ou encargos da respectiva colheita, em violação do disposto, respectivamente, nos n.ºs 2 a 4 do artigo 5.º é punido com pena de multa até 120 dias.

 

Artigo 19.º

(Colheitas e transplantações ilícitas)

1. Quem efectuar ( ... ) colheitas de órgãos ou tecidos que infrinjam qualquer das disposições do artigo 6.º é punido com pena de prisão até 3 anos e multa até 360 dias.

2. Incorre na pena de prisão até dois anos e multa até 240 dias:

a) Quem efectuar ( ... ) colheita ou transplantação de órgãos ou tecidos que decorra sem a vigilância directa de um médico responsável, de acordo com o disposto no artigo 3.º.

b) Quem efectuar ( ... ) colheita ou transplantação em local que não seja um estabelecimento hospitalar autorizado,

3. Incorre na pena prevista no número 1, quem efectuar ( ... ) colheita ou transplantação sem o consentimento previsto no artigo 8.º.

4. Quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem dos factos previstos nos números anteriores, é punível como cúmplice.

5. À coacção cometida com o intuito de obter consentimento para a realização de colheita de órgãos ou tecidos, é aplicável a pena prevista para a coacção grave.

6. A tentativa é punível.

( ... )

 

Artigo 20.º

(Colheitas em cadáveres)

1. Quem extrair órgão ou tecido de cadáveres humanos fora dos pressupostos desta lei, é punido com pena de prisão até dois anos e multa até 240 dias.

2. A tentativa é punível.

 

Artigo 21º

(Penas acessórias)

Em caso de condenação por qualquer dos crimes previstos nos artigos anteriores, o tribunal pode ainda aplicar uma ou mais das seguintes penas:

a) Demissão de cargo ou função pública,

b) Interdição do exercício da profissão por período não inferior a 1 e não superior a cinco anos; ( ... )

c) Encerramento, por período não superior a 2 anos, do estabelecimento não autorizado nos termos do no 1, do artigo 3.º, onde foi efectuada a colheita ou a transplantação.

 

Artigo 22.º

(Outras infracções)

1. A violação do disposto no artigo 7.º é punida com multa de 10. 000 a 100.000 patacas.

2. A violação do disposto no n.º2 ou no n.º 3 do artigo 13.º, bem como no n.º 1 do artigo 14.º é punida com multa de 5.000 a 40.000 patacas.

 

CAPÍTULO V

Disposições finais

 

Artigo 23.º

(Comissão de Ética para as Ciências da Vida)

É criada a Comissão de Ética para as Ciências da Vida, cuja composição e competências, sem prejuízo do disposto no artigo 12.º, são definidas pelo Governador.

 

Artigo 24.º

(Entrada em vigor)

As disposições da Capítulo III do presente diploma apenas entram em vigor depois da publicação no Boletim Oficial da portaria e do despacho previstos, respectivamente, n.º 2 do artigo 11.º e no n.º 3, do artigo 12.º.

Aprovado em

A Presidente da Assembleia Legislativa.

Promulgada em

Publique-se

O Governador.