Projecto de Lei n.o 9/V/94

EXERCÍCIO DO DIREITO DE PETIÇÃO

A Assembleia Legislativa decreta, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Orgânico, para valer como lei a seguinte:

 

CAPÍTULO I

Disposições gerais

Artigo 1.º

(Âmbito)

1. A presente lei regula e garante o exercício do direito de petição para defesa dos direitos das pessoas, da Ordem Jurídica ou do interesse geral, mediante a apresentação aos órgãos de governo próprio, ou a quaisquer autoridades públicas, de petições, representações, reclamações ou queixas.

2. A presente lei não se aplica:

a) À defesa dos direitos e interesses perante os tribunais;

b) À Impugnação dos actos administrativos, através de reclamação ou recursos hierárquicos;

c) Ao direito de queixa ao Alto Comissariado contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa;

d) À petição colectiva dos militares e agentes militarizados das Forças de Segurança de Macau.

 

Artigo 2.º

(Definições)

1. Para efeitos desta lei, entende-se por:

— Petição, em geral, a apresentação de um pedido ou de uma proposta a um órgão do governo próprio ou a qualquer autoridade pública no sentido de que tome, adopte ou proponha determinadas medidas;

— Representação a exposição destinada a manifestar opinião contrária da perfilhada por qualquer entidade ou a chamar a atenção de uma autoridade pública relativamente a certa situação ou acto, com vista à sua revisão ou à ponderação dos seus efeitos;

— Reclamação impugnação de um acto perante o órgão, funcionário ou agente que o praticou ou perante o seu superior hierárquico;

— Queixa a denúncia de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, bem como do funcionamento anómalo de qualquer serviço, com vista à adopção de medidas contra os responsáveis.

2. As petições, representações, reclamações e queixas dizem-se colectivas quando apresentadas por um conjunto de pessoas através de um único instrumento e em nome colectivo quando apresentadas por uma pessoa colectiva em representação dos respectivos membros.

3. Sempre que, nesta lei, se empregue unicamente o termo «petição», entende-se que o mesmo se aplica a todas as modalidades referidas no presente artigo.

 

Artigo 3.º

(Cumulação)

O direito de petição é cumulável com outros meios de defesa de direitos e Interesses legítimos e não pode ser limitado ou restringido no seu exercício por qualquer órgão de governo próprio ou por qualquer autoridade pública.

 

Artigo 4.º

(Titularidade)

1. O direito de petição é exercido individual ou colectivamente.

2. Gozam igualmente do direito de petição quaisquer pessoas colectivas legalmente constituídas.

 

Artigo 5.º

(Universalidade e gratuitidade)

A apresentação de petições constitui direito universal e gratuito e não pode, em caso algum, dar lugar ao pagamento de quaisquer impostos ou taxas.

 

Artigo 6.º

(Liberdade de petição)

Nenhuma entidade, pública ou privada, pode proibir ou por qualquer forma impedir ou dificultar o exercício do direito de petição designadamente na livre recolha de assinaturas e na prática dos demais actos necessário, salvo se o seu exercício violar quaisquer outras normas legais.

 

Artigo 7.º

(Garantias)

1. Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado ou privado de qualquer direito em virtude do exercício do direito de petição.

2. O disposto no número anterior não exclui a responsabilidade criminal, disciplinar ou civil do peticionante se do seu exercício resultar ofensa ilegítima de direitos ou interesses legalmente protegidos.

 

Artigo 8.º

(Dever de exame e de comunicação)

1. O exercício do direito obriga a entidade destinatária a receber e examinar as petições, representações, reclamações ou queixas, bem como a comunicar as decisões que forem tomadas.

2. O erro na qualificação da modalidade do direito de petição de entre as que se referem no artigo 2.º não justifica a recusa da sua apreciação pela entidade destinatária.

 

CAPÍTULO II

Forma e tramitação

Artigo 9.º

(Forma)

1. A petição, a representação, a reclamação e a queixa devem ser reduzidas a escrito, não estando o exercício do seu direito sujeito a qualquer forma ou a processo específico.

2. O direito de petição pode ser exercido por via postal ou através de telégrafo, telex, telecópia e outros meios de telecomunicação.

3. A entidade destinatária deve convidar o peticionante a completar o escrito apresentado quando:

a) Aquele não se mostre e correctamente identificado o não contenha menção do seu domicílio;

b) O texto seja ininteligivel ou não especifique o objecto da petição.

4. Para efeitos do número anterior, a entidade destinatária fixa um prazo não superior a 20 dias, com a advertência de que o não suprimento das deficiências apontadas determina o arquivamento liminar da petição.

5. Em caso de petição colectiva ou em nome colectivo é suficiente a identificação completa de um dos signatários.

 

Artigo 10.º

(Apresentação)

As petições devem, em regra, ser apresentadas nos serviços das entidades a que são dirigidas.

 

Artigo 11.º

(Indeferimento liminar)

1. A petição é liminarmente indeferida quando for manifesto que:

a) A pretensão deduzida é ilegal;

b) Visa a reapreciação de decisões dos tribunais ou de actos administrativos insusceptiveis de recurso;

c) Visa a reapreciação, pela mesma entidade, de casos já anteriormente apreciados na sequência do exercício do direito de petição, salvo se forem invocados ou tiverem ocorrido novos elementos de apreciação.

2. A petição é ainda liminarmente indeferida se:

a) For apresentada a coberto de anonimato e do seu exame não for possível a identificação da pessoa ou pessoas de quem provém;

b) Carecer de qualquer fundamento.

 

Artigo 12.º

(Tramitação)

1. A entidade que recebe a petição, se não ocorrer indeferimento liminar referido no artigo anterior, decide sobre o seu conteúdo, com a máxima brevidade compatível com a complexidade do assunto nela versado.

2. Se a mesma entidade se julgar incompetente para conhecer da matéria que é objecto da petição, remete-a à entidade para o efeito competente, informando do facto o autor da petição.

3. Para ajuizar sobre os fundamentos invocados, a entidade competente pode proceder às averiguações que se mostrem necessárias e, conforme os casos, tomar as providências adequadas à satisfação da pretensão ou arquivar o processo.

 

CAPÍTULO III

Petições Dirigidas à Assembleia Legislativa

Artigo 13.º

(Tramitação)

1. As petições dirigidas à Assembleia Legislativa são endereçadas ao seu Presidente que, em razão da matéria envolvida, tomará as seguintes medidas:

a) Remeter a petição à apreciação das comissões competentes, ou de comissão especialmente constituída para o efeito se a petição incidir sobre política global do Território, matérias reservadas às competências da Assembleia Legislativa, ou se o Presidente entender que a petição se relaciona com relevantes interesses do Território;

b) Apresentar a petição ao Governador a fim de ser tratada pela entidade competente;

c) Remeter a petição ao Procurador-Geral Adjunto, no pressuposto da existência de indícios para o exercício de acção penal;

d) Remeter a petição à Polícia Judiciária, no pressuposto da existência de indícios que justifiquem uma investigação policial;

e) Remeter a petição ao Alto Comissariado contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa para os feitos do disposto na Lei n.º 11/90/M, de 10 de Setembro;

f) Notificar o peticionante de completar o escrito apresentado ou de apresentar elementos complementares, no caso de incumprimento do disposto nos números 1 e 3 do artigo 9.º;

g) Indeferir liminarmente a petição, se ocorrerem os casos previstos no artigo 11.º e comunicar a decisão ao peticionante;

h) Explicar ao peticionante de direitos que revele desconhecer, de vias que eventualmente possa seguir ou de atitudes que eventualmente possa tomar para obter o reconhecimento de um direito, a protecção de um interesse ou a reparação de um prejuízo;

i) Esclarecer ao peticionante, ou ao público em geral, sobre qualquer acto do Território e demais entidades públicas, relativo à gestão dos assuntos públicos que a petição tenha colocado em causa ou em dúvida;

j) Arquivar a petição e comunicar o facto ao peticionante.

2. O Presidente da Assembleia Legislativa decide sobre a petição nos termos do número anterior, no prazo de 30 dias a contar da data do recebimento da mesma e comunica a respectiva decisão ao peticionante.

3. A comissão competente, ou a comissão especial, deve apreciar as petições, entregues através do Presidente da Assembleia Legislativa, no prazo prorrogável de 30 dias a contar da data do seu recebimento por aquela.

4. Findo o exame da petição pela comissão, é elaborado um relatório final que deve ser enviado ao Presidente da Assembleia Legislativa com proposta das providências que se julguem adequadas, se for caso disso.

 

Artigo 14.º

(Efeitos)

Do exame das petição e dos respectivos elementos de instrução feito pela comissão pode, nomeadamente, resultar:

a) A sua apreciação pelo plenário da Assembleia Legislativa, nos termos do artigo 18.º;

b) A sua remessa, com sugestões que se julguem adequadas, à entidade competente em razão da matéria para a sua apreciação:

c) A elaboração, para futura subscrição por qualquer Deputado, de medida legislativa que se mostre justificada;

d) A proposta ao Governador para eventual medida legislativa ou administrativa;

e) O seu arquivamento, com conhecimento ao peticionante ou peticionantes.

 

Artigo 15.º

(Poderes da comissão)

1. A comissão pode ouvir os peticionantes, solicitar depoimentos de quaisquer pessoas e requerer e obter informações e documentos dos órgãos de governo próprio ou de quaisquer entidades públicas ou privadas, sem prejuízo do disposto na lei sobre segredo da justiça, sigilo profissional, podendo solicitar à Administração Pública as diligências que se mostrem necessárias.

2. Após exame da questão suscitada pelo peticionante, a comissão pode solicitar, sob proposta do relator, que as entidades competentes prestem o necessário esclarecimento sobre a matéria.

3. Recebidas as solicitações da comissão referidas no número anterior, as entidades competentes devem, com a maior brevidade possível, realizar diligências e dar resposta à Assembleia Legislativa.

4. O exercício dos poderes previstos neste artigo deve referir a presente lei.

 

Artigo 16.º

(Acompanhamento do exame)

1. Quando as diligências solicitadas pela comissão, no exercício dos poderes previstos no artigo anterior, sejam recusadas injustificadamente pelas entidades públicas, deve aquela comunicar o ocorrido à entidade, que lhes é hierarquicamente superior e aos órgãos competentes para a tomada das medidas adequadas à continuação do processo.

2. Solucionada a situação de recusa pode a comissão, de acordo com os procedimentos estabelecidos:

a) Continuar a apreciação da matéria em causa;

b) Solicitar novamente às respectivas entidades a necessária colaboração;

c) Sugerir directamente a essas entidades no sentido de corrigirem a situação ou de repararem as causas que deram origem à petição.

 

Artigo 17.º

(Sanções)

1. A falta de comparência injustificada, a recusa de depoimento ou o não cumprimento das diligências previstas no n.º 1 do artigo 15.º constituem crime de desobediência, sem prejuízo do procedimento disciplinar que no caso couber.

2. A falta de comparência injustificada por parte dos peticionantes pode ter como consequência o arquivamento do respectivo processo, não lhes sendo aplicado o previsto no número anterior.

 

Artigo 18.º

(Apreciação pelo plenário)

1. Analisada a petição, a comissão deve decidir sobre a apreciação da mesma em plenário, de acordo com o âmbito da matéria, a sua importância social, económica ou cultural e a gravidade da situação objecto da, petição.

2. As petições que, nos termos do número anterior, estejam em condições de serem apreciadas pelo plenário, são enviadas ao Presidente da Assembleia Legislativa, para agendamento, acompanhadas dos relatórios devidamente fundamentados e dos outros elementos instrutórios, se os houver.

3. A matéria constante da petição não é submetida a votação, mas, com base na mesma, qualquer Deputado pode exercer o direito de iniciativa, nos termos regimentais e, aquando da apreciação desta, será avocada a petição.

4. Do que se passar à dado conhecimento ao primeiro signatário da petição, a quem à enviado um exemplar do número do Diário da Assembleia Legislativa em que se mostre reproduzido o debate, a eventual apresentação de qualquer proposta com ele conexa e o resultado da respectiva votação.

 

Artigo 19.º

(Publicação)

1. O Presidente da Assembleia Legislativa, sob proposta da comissão, pode decidir sobre a publicação das petições, na íntegra, no Diário da Assembleia Legislativa.

2. São igualmente publicados os relatórios relativos às petição referidas no número anterior ou que o Presidente da Assembleia Legislativa, sob proposta da comissão, entenda que devem ser publicados.

3. O plenário será informado do sentido essencial das petições recebidas e das medidas sobre elas tomadas pelo menos duas vezes por sessão legislativa.

 

CAPÍTULO IV

Disposição final

Artigo 20.º

(Entrada em vigor)

A presente lei entra em vigor no 30.º dia posterior ao da sua publicação.

 

 

Exposição de motivos

O direito de petição — um dos mais antigos e sedimentados direitos fundamentais e que, em Macau, a sua positividade remonta ao século XIX — contém, a um tempo, dois propósitos essenciais:

— Por um lado, é um direito de garantia de outros direitos, ou seja, desempenha uma função de defesa e prevenção de violações de certos direitos fundamentais, enfileirando assim ao lado de outros desses direitos, como o direito de amparo ou o direito de resistência;

— Por outro lado, reveste uma vertente de direito político, pois pode configurar-se como um instrumento de participação das pessoas no exercício da vida política, de que é exemplo a apresentação de sugestões respeitantes ao interesse geral.

O direito de petição está consagrado como direito fundamental no artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa, estando o mesmo vigente em Macau, por recepção do artigo 2.º do Estatuto Orgânico, porquanto se integra nos «Direitos, Liberdades e Garantias».

No entanto, apesar da sua importância intrínseca e, sem embargo da sua vinculatividade directa, inexiste legislação local concretizadora e regulamentadora do exercício desse direito fundamental.

Com efeito, apenas o regimento da Assembleia Legislativa dispensa alguns artigos (167.º a 173.º) à matéria em apreço, revestindo essas normas naturalmente, um carácter quase só processualístico.

Não se pode deixar de referir ainda que este direito fundamental, pessoal e político está devidamente consagrado na Lei Básica da futura Região Administrativa de Macau, no ponto 18) do artigo 50.º

A finalizar uma descrição sumária do articulado proposto. O projecto de diploma está estruturado em vinte artigos distribuídos por quatro capítulos (disposições gerais, forma e tramitação, petições dirigidas à Assembleia Legislativa e disposição final).

Ao longo do articulado estabelecem-se os princípios enformadores do direito de petição, as modalidades do seu exercício, bem como as regras procedimentais.