Extracção parcial do Plenário de 6 de Junho de 1995

 

A Sra. Presidente Anabela Sales Ritchie: Havendo já entrado na sala os nossos convidados, a Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais, Dra. Ana Perez, e seus directos colaboradores, Sr. Dr. Bernardino de Carvalho, seu Chefe de Gabinete e, ainda, Sr. Dr. Pimenta Esteves, Director do Hospital, dou-lhes as boas-vindas e agradeço, desde já, em nome do Plenário, a colaboração que nos vão prestar nesta segunda parte da reunião.

Vou, assim, dar a palavra à Sra. Secretária-Adjunta ou a um dos seus colaboradores para a apresentação da proposta de lei que regula a "Dádiva, colheita e transplantação de órgãos e tecidos de origem humana".

A Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais (Ana Perez): Muito obrigada, Senhora Presidente.

Muito boa-tarde, Srs. Deputados.

Começo por lembrar que se trata de uma proposta de lei já constante das Linhas de Acção Governativa, aprovada por esta Assembleia, para o ano de 1995, em que se anunciava que iria ser, oportunamente, presente a esta Casa uma proposta de lei, visando regulamentar a "Dádiva, colheita e a transplantação de órgãos e tecidos de origem humana". O Executivo entendeu submeter este diploma à apreciação e aprovação desta Assembleia, por conter matérias relacionadas com os "direitos, liberdades e garantias do cidadão" e da pessoa humana e, bem assim, com princípios que poderão ser questionados e sujeitos a um debate mais aprofundado.

Antes de prosseguir, gostava de saber da Senhora Presidente se, juntamente com a proposta de lei, veio a exposição de motivos.

A Sra. Presidente: Veio, sim, Senhora Secretária-Adjunta.

A Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais: Julgo, portanto, que nessa exposição de motivos estarão contidas as razões que determinaram a elaboração desta proposta de lei. No entanto, não sei se deva fazer a sua leitura aos Srs. Deputados, uma vez que a terão já lido.

Assim, ficava tão-somente à disposição dos Srs. Deputados para eventuais pedidos de esclarecimentos que queiram fazer e, depois, certamente, a Comissão Especializada analisará e aprofundará a matéria mais em pormenor.

Muito obrigada.

A Sra. Presidente: Agradeço à Sra. Secretária-Adjunta os esclarecimentos prestados ao Plenário.

Creio que os Srs. Deputados terão já lido, quer o texto da proposta de lei, quer a pormenorizada exposição de motivos que o acompanha.

Refiro que esta proposta de lei foi distribuída para exame e emissão de parecer à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, por, efectivamente, cair na sua alçada.

Pergunto se algum dos Srs. Deputados deseja ver aclarado qualquer ponto relativo a esta matéria.

Talvez eu possa colocar aqui uma dúvida: os objectivos, no fundo, subjacentes a esta proposta de lei são mais ou menos para todos evidentes, uma vez que, muito claramente, estão aqui consagrados artigos que aludem à não comercialização de actos previstos na proposta de lei e à gratuitidade da prática desses actos.

Contudo, nos tempos mais recentes, tem vindo a ser noticiada a "comercialização de órgãos", sobretudo através da imprensa escrita. Ainda na semana passada um jornal de expressão inglesa de Hong-Kong dava-nos conta de anúncios, que o jornal descobrira junto de hospitais, publicitando abertamente o comércio dos mais variados órgãos humanos que atingiam preços exorbitantes como seiscentas mil patacas e fazendo referência até a contactos, coisa que deveras nos chocou e preocupa, porquanto põem em causa partes do corpo humano que merece todo o respeito.

Gostava, por isso, de saber, se possível fosse, que intenções animam a Administração ou o Executivo em relação a esta matéria. Estará na ideia a construção, num futuro próximo, de um Centro de Transplantes, apesar dos custos que a sua criação representa para o Território, sobretudo atento o diminuto universo de utentes em Macau que, como sabemos, não é tão grande como, por exemplo, o de Hong-Kong ou das regiões vizinhas? Haverá alguma intenção de se dotar o Hospital público das condições necessárias para a prática desses actos? Haverá algum sinal dos hospitais privados, no sentido de também eles virem a iniciar esse tipo de operações?

Estas interrogações vêm-me à mente, porque o artigo 3.º fala de "Colheita em cadáveres", medida que só entrará em vigor, apesar de tudo, mediante a publicação de uma portaria que, suponho, criará um registo de dadores e, ainda, de um despacho que regulamentará algumas áreas, nomeadamente, "quando é que se verifica a morte" e por aí fora.

Resumindo, gostaria de saber o que é que há a nível de vontades e intenções por parte do Executivo em relação a esta matéria.

Tem a palavra a Sra. Secretária-Adjunta.

A Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais: Muito obrigada, Senhora Presidente.

Relativamente a esta matéria, tenho a dizer que a Senhora Presidente se referiu (e muito bem) às situações recentemente detectadas nesta zona geográfica sobre a venda de órgãos para transplante. É nesse sentido que o Território deve dispor de legislação que regule essa matéria.

Quanto à criação de um centro de transplantes em Macau, sugestão deixada pela Senhora Presidente, devo informar não ser ela necessária, pois que serão feitos nos centros hospitalares. Há até transplantes de fácil execução, como sejam o transplante de córneas.

Como a Senhora Presidente sabe, existe já criada em Macau uma associação, presidida até por um Sr. Deputado, o Sr. Dr. Edmundo Ho, ligado ao "Lion’s Club", cujo objectivo principal é suportar e apoiar transplantes de córneas no Território. Mas esta acção não pôde ainda ser implementada, exactamente por se verificar a inexistência de legislação adequada no Território, por exemplo, no que toca a: "quem seria o dador"; "quem poderia doar", etc.. É verdade que foi criada com as melhores das intenções, mas viu-se inibida de levar a cabo tão benéfica acção por não existir, efectivamente, um quadro legal que permitisse executá-la, apesar da sua simplicidade. Quer o próprio Hospital Kiang-Wu, quer o Hospital público têm capacidade para realizar esses transplantes de córneas. Isto, entre outros transplantes para os quais não deixamos de ter meios científicos e técnicos para os levara a efeito. Refiro-me, por exemplo, aos casos de transplante renal e até da medula, embora para isso seja necessário criarem-se condições assépticas para a sua execução.

Tendo ao nosso dispor meios técnicos e científicos, agora precisamos agora de legislação e, neste sentido, aparece este diploma.

Importa ainda realçar que, em qualquer país civilizado, existe regulamentação específica sobre a matéria como forma de evitar que não seja à custa de uns seres humanos que se restitua a vida a outros, sobretudo quando há em mira a obtenção de benefícios meramente económicos e comerciais.

Este diploma visa exactamente isso. Enfim, resume-se, podemos dizer, num diploma para o presente e para o futuro, pois que, em qualquer país dito civilizado, existe legislação sobre a matéria.

A Sra. Presidente: Agradeço as palavras da Sra. Secretária-Adjunta.

Gostava ainda de lhe dirigir um outro pedido, que, a meu ver, terá algum interesse para o Plenário, visto, infelizmente, não dispormos de muita documentação e textos de apoio sobre a matéria, a não ser a provinda de Portugal que, naturalmente, serviu de base e orientou a feitura desta proposta, ainda que, num e noutro sentido, dela se afaste. Aproveito, entretanto, para relembrar que, no pequeno centro de documentação da Assembleia, existe um "livrinho" intitulado "colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres". Apesar de ele existir, julgo que haveria o maior interesse em ter acesso a toda a legislação que respeitasse a este assunto e que fosse possível conseguir, pois, confesso, a documentação disponível é francamente parca. Caso ela exista no Gabinete da Sra. Secretária-Adjunta, muito gratos lhe ficaríamos se no-la pudesse disponibilizar ou torná-la acessível à Assembleia.

A Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais: Tenho ao meu dispor, quer a legislação britânica, quer a de Hong-Kong, bem como alguma proveniente da República Popular da China, que poderei, com todo o gosto, facultar.

A Sra. Presidente: Agradeço à Sra. Secretária-Adjunta essa disponibilidade.

Vou dar agora a palavra à Sra. Deputada Beatriz Basto da Silva.

A Sra. Deputada Beatriz Basto da Silva: Muito obrigada Senhora Presidente.

Gostava de apenas pedir um esclarecimento. Relativamente ao artigo 4.º, ponto 4, interrogo-me se os "catorze" anos aqui apontados serão a melhor das idades para se começar a pedir o consentimento ou a concordância de quem doa, uma vez que me parece haver, cada vez mais, maior precocidade por parte dos jovens. Consigo até imaginar crianças, por exemplo, com dez anos de idade, possuídas de personalidade suficiente para dizer e mostrar o seu interesse em querer doar.

Atendendo a este ponto de vista, devo dizer que fico um tanto perplexa, por me parecer desnecessário esperar que atinjam os catorze anos para saberem se estão ou não na disposição de o fazer.

É óbvio que quem se encontre nestas circunstâncias não gostará certamente de se prestar a uma dádiva desta natureza, principalmente se for ainda adolescente, muito embora me pareça que tenha já a percepção de situações várias que convergem e conduzem a uma situação de necessidade. Na minha opinião, talvez conviesse pedir mais cedo esse consentimento ou essa concordância do ser humano.

Gostava de ouvir algo que me esclarecesse num outro ponto.

Todos sabemos que o n.º 14 tem origem noutra legislação, mas nós estamos aqui para criar outra que venha a propósito e seja actualizada. No entanto, na minha maneira de ver, há aqui qualquer coisa que não consigo descortinar de forma muito clara, ou seja,há qualquer coisa que liga esta legislação à prática do aborto.

A este respeito, tenho de confessar que não estou muito esclarecida, uma vez que não vem aqui claramente mencionado (mas, enfim, está nas entrelinhas: nos "tecidos humanos", etc.) o comércio de fetos para fabrico de cremes regenerativos e cosmética. Apercebendo-me eu ser esta uma das grandes aflições do mundo actual, gostava que, a nível pessoal, me informassem algo mais a este propósito.

Muito obrigada.

A Sra. Presidente: Tenho a impressão que a intervenção da Sra. Deputada Beatriz Basto da Silva entra já em aspectos próprios de uma apreciação na especialidade. Não vejo mal algum nisso!, mas, se assim é, haverá certamente em muitos de nós um sem número de aspectos a discutir.

Refiro a título de curiosidade que a tal questão dos "catorze anos" também eu não deixei de a anotar.

Em jeito de informação, esclarecia a Sra. Deputada que em Portugal, por exemplo, em vez de se fazer referência à idade dos "catorze anos", se diz muito simplesmente: "os menores com capacidade de entendimento", indicando que um menor, supunhámos com dez anos de idade e capaz de entender a situação, pode perfeitamente opor-se ou aceitar a situação da dádiva ou colheita.

Todavia, com o devido respeito e ainda que as chamadas de atenção tenham a sua lógica e legitimidade, penso que não deveríamos entrar em aspectos que, tal como dizia a Sra. Secretária-Adjunta, podemos discutir com mais tempo em sede de Comissão.

No entanto, se a Sra. Secretária-Adjunta quiser responder, dou-lhe a palavra.

A Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais: Muito obrigada, Sra. Presidente.

Relativamente à segunda questão, importa relembrar que este diploma se refere a órgãos para transplante e não para venda comercial. Daí o facto de não se haver referido a utilização de fetos ou de outros órgãos para outros fins que não unicamente para o transplante. Portanto, a própria natureza do diploma veio limitar esse aspecto.

No tocante à questão da "idade", ela está como informou a Senhora Presidente, omissa, muito embora possua um parecer do Sr. Procurador-Adjunto que vai no sentido de ser preferível aproximarmo-nos ou indicar uma idade mais próxima, para não corrermos o risco de a discussão se alongar em torno da questão. Daí que tivéssemos avançado com a idade dos catorze anos.

Contudo, sendo a Assembleia soberana, pode avançar com uma idade que lhe pareça mais consentânea e adequada ao fim em vista.

De um parecer do Sr. Procurador-Adjunto consta que o deixar ao critério do legislador a definição do desenvolvimento da criança com capacidade de discernir e de decidir, era um preceito muito vago, preferindo, por isso, a explicitação no texto da lei de uma idade, que situamos nos "catorze anos". Refiro que, quanto a isso, seguimos um pouco a legislação laboral, que fixou os catorze anos como idade a partir da qual, e mediante certas condições, o menor pode trabalhar. Procuramos por aproximação encontrar uma idade e esta norma serviu de ponto de referência.

Porém, não me oponho à sua redução ou aumento, mas, primeiramente conviria que se travasse um debate mais alargado sobre o diploma, dado o facto de interferir com os direitos das pessoas. Vistas bem as coisas, penso que os Srs. Deputados poderão dar um grande contributo em termos de apreciação.

Muito obrigada, Senhora Presidente.

A Sra. Presidente: Agradeço os esclarecimentos da Sra. Secretária-Adjunta.

Afinal, foi oportuno o levantamento da questão, porque nos permitiu ficarmos a conhecer a origem da fixação dessa idade dos "catorze anos".

Penso que o Plenário, pelo menos nesta fase, estará esclarecido. Agradeço a presença e a colaboração, quer da Sra. Secretária-Adjunta para os Assuntos Sociais, quer dos seus colaboradores, na reunião de hoje.

A todos, muito obrigada.