Projecto de lei n.º 8/VI/97 *

Lei da criminalidade organizada

 

Artigo 1. º

(Definição de associação ou sociedade secreta)

Para efeitos do disposto na presente lei considera-se associação ou sociedade secreta, em chinês "Hac sé Vui", (....) em inglês "Triad Society", a organização clandestina ou legalmente constituída, cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes, quando os que dela fazem parte se aproveitem da força de intimidação do vínculo associativo, da sujeição e da regra de silêncio que dele derivam, para obter benefícios ou vantagens ilícitas, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação e para praticar, nomeadamente, os crimes seguintes:

a) Homicídio e ofensas corporais;

b) Sequestro e rapto;

c) Ameaça, coacção, e extorsão a pretexto de protecção;

d) Lenocínio;

e) Tráfico de estupefacientes;

f) Agiotagem ou usura criminosa;

g) Furto, roubo e dano,

h) Aliciamento e auxílio à migração clandestina;

i) Exploração ilícita de jogo ou de lotarias e apostas mútuas;

j) Ilícitos relacionados com corridas de animais;

l ) Usura para jogo;

m) Importação, exportação, compra, venda, fabrico, uso, porte e detenção de armas proibidas e substâncias explosivas;

n) Fraude e corrupção eleitoral,

o) Especulação sobre títulos de transporte;

p) Falsificação de moeda, títulos de crédito e cartões de crédito;

q) Corrupção activa;

r) Extorsão de documento;

S) Abuso de cartão de garantia ou de crédito;

t) Contrabando e descaminho.

_________________

Os proponentes: Rui Afonso, Kou Hoi In, Liu Yuk Lun, Ng Kuok Cheong, Raimundo Rosário.

 

Artigo 2.º

(Indícios probatóríos)

1. Constituem indícios da qualidade de membro de uma associação ou socie-dade secreta os seguintes factos:

a) Invocação pelo próprio da qualidade de membro, filiado ou patrocinador da associação, por atitudes, palavras ou actos adequados a criarem a convicção de tal qualidade;

b) A guarda ou o controlo de livros ou extractos de livros, ou contas da asso-ciação, relação de membros, ou trajes especificamente adequados às cerimônias rituais da associação;

c) Participação em cerimônias rituais da associação;

d) Participação em reuniões de associações ou sociedades secretas;

e) Utilização de senhas ou códigos de qualquer natureza, característicos das associações secretas.

2. Constituem indícios de que exercem funções de chefia ou de direcção os membros das associações secretas que entre si usem ou sejam conhecidos pelos seguintes numerais ou títulos:

a) "489" - "Sán Chu" (...) - chefe supremo de associação ou sociedade secreta;

b) "438" - "Fu Sán Chu" (...) - adjunto do chefe supremo de associação ou sociedade secreta;

c) "Heong Chu" (...) - mestre do incenso, que preside às cerimónias rituais de associação ou sociedade secreta;

d) "Sin Fóng" (...) - oficial de vanguarda;

e) "Seong Fa" (...) - oficial de estado maior;

f) "426" ou "Hong Kuan" (...) - oficial combatente;

g) "415" ou "Pák Chi Sin" (...) - oficial conselheiro;

h) "Cha So" (...) - tesoureiro;

i) "432" ou "Ch’ou Hai" (...) - oficial mensageiro ou de ligação;

j) "Cho Kun" (...) - administrador-chefe;

l) "À Kong" (...) - chefe do "Tai Kó";

m) "Tal Kó" (...) - "Tai Lou" (...) - "Teng Ié" (...) - membro de direcção com funções de chefia não especificadas.

 

Artigo 3.º

(Crime de associação ou sociedade secreta)

1. Quem promover ou fundar uma associação ou sociedade secreta do tipo a que se refere o artigo 1º quem dela faça parte ou quem a apoie, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões, angariando subscrições, exigindo ou concedendo fundos ou qualquer auxílio para que se recrutem novos membros, designadamente, aliciando ou fazendo propaganda, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

2. Quem exercer funções de direcção ou chefia em qualquer grau, é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.

3. A pena prevista no n.º 1 é agravada de um terço no seu limite mínimo, permanecendo o limite máximo ínalterado, se o recrutamento, o aliciamento ou a exigência de fundos se dirigirem a menores de 18 anos.

 

Artigo 4.º

(Regime especial)

As penas referidas no artigo anterior podem ser especialmente atenuadas, substituídas por pena não privativa da liberdade ou o facto deixar de ser punível se o agente impedir ou se esforçar seriamente por impedir a continuação das associações ou sociedades secretas ou comunicar à autoridade a sua existência, designadamente, declarando a identidade de outros membros ou apoiantes e revelando os fins, planos ou actividades dessas associações, de modo a esta poder evitar a prática de crimes.

 

Artigo 5.º

(Penas acessórias)

1. Quem for condenado por crime previsto no artigo 3.º pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua projecção na idoneidade cívica do agente, ser incapacitado para eleger membros do órgão legislativo ou para ser eleito como tal, por um período de 2 a 10 anos.

2. O funcionário que for condenado por crime previsto no artigo 3.º e que não for demitido disciplinarmente das funções públicas que desempenhe, pode, se o facto revelar indignidade no exercício do cargo ou implicar a perda da confiança necessária ao exercício dessas funções, ser proibido do seu exercício por um período de 2 a 5 anos.

3. O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às pro-fissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.

4. Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por decisão judicial.

 

Artigo 6.º

(Homicídio especialmente qualificado)

O homicídio praticado por dois ou mais agentes, actuando concertadamente, com armas proibidas ou outros meios especialmente perigosos, ainda que não se prove a relação de pertença a uma associação ou sociedade secreta, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 129.º do Código Penal.

 

Artigo 7.º

(Ofensa especialmente qualificada à integridade física)

A ofensa à integridade física praticada por dois ou mais agentes, actuando concertadamente, com armas proibidas ou outros meios que possam por em risco a vida ou a saúde do ofendido, ainda que não se prove a relação de pertença a uma associação ou sociedade secreta, é susceptível de revelar especial cen-xurabilidade ou perversidade do agente, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 140.º do Código Penal.

 

Artigo 8.º

(Sequestro e rapto especialmente qualificados)

O sequestros e o rapto praticados por dois ou mais agentes, actuando con-certadamente, ainda que não se prove a relação de pertença a uma associação ou sociedade secreta, são punidos, se outra pena mais grave não Ines couber, com as penas previstas, respectivamente, no n.º 2 do artigo 152.º e no n.º 2 do artigo 154.º do Código Penal.

 

Artigo 9.º

(Extorsão a pretexto de protecção)

1. A simples proposta ou oferta de protecção a pessoas ou bens, feita por ou em nome de uma associação ou sociedade secreta, ou invocando esta e mediante ameaças de represálias contra as mesmas pessoas ou outras pessoas ou bens, com o propósito de obter vantagens patrimoniais ou outras, é punida com a pena de 2 a 10 anos.

2. Não obstará à verificação do crime referido no número anterior o facto de a ameaça de represálias e o pedido de remuneração não serem feitos decla-radamente, desde que o sejam por modo a que razoavelmente os faça pressupor no espírito do ofendido.

3. Se tais represálias forem efectuadas o agente é punido, em acumulação material com a pena do n.º 1, com a pena de prisão de 2 a 10 anos, se pena mais grave lhe não couber.

 

Artigo 10.º

(Invocação de pertença a associação ou sociedade secreta)

1. Quem invocar a relação de pertença a uma associação ou sociedade secreta de forma a provocar medo ou inquietação noutra pessoa ou prejudicar a sua liberdade de determinação, designadamente constrangendo-a a uma acção ou a uma omissão ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos.

2. Se na coacção prevista no n.º 1 se verificar o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 149.º do Código Penal o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

 

Artigo 11.º

(Procedimento criminal)

O procedimento criminal pelos crimes previstos nesta lei não depende de queixa.

 

Artigo 12.º

(Critério especial de escolha da pena)

Nos casos dos crimes dos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º não pode haver lugar a suspensão da pena de prisão aplicada, salvo se se verificarem os pressupostos do artigo 4.º.

 

Artigo 13.º

(Reincidência)

Não obsta à reincidência nos crimes previstos nos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º, o facto de terem decorrido mais de 5 anos entre a prática do primeiro crime e a prática do segundo.

 

Artigo 14.º

(Prorrogação da pena)

1. A pena de prisão efectiva superior a 3 anos pela prática de crime previsto nos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º, é prorrogada por dois períodos sucessivos de 3 anos se:

a) O agente tiver cometido anteriormente crime previsto nos mesmos artigos ou enunciado nas alíneas a) a q) do artigo 1º a que tenha sido aplicada também prisão efectiva; e

b) Ao expirar da pena ou da primeira prorrogação for fundadamente de esperar, atendendo às circunstâncias do caso, à vicia anterior do agente, à sua personalidade e à evolução desta durante a execução da prisão e aos indícios de continuidade de vinculação a associação ou sociedade secreta, que o condenado, uma vez em liberdade, não conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável sem cometer crimes.

2. São tomados em conta, nos termos do número anterior, os crimes referidos na alínea a) julgados fora de Macau que tiverem conduzido à aplicação de prisão efectiva por mais de 2 anos.

 

Artigo 15.º

(Proibição de entrada no Território)

Será interdita a entrada no Território aos não residentes que tiverem sido condenados por crime previsto no artigo 3.º, ainda que por tribunal fora de Macau, ou contra os quais haja fortes indícios de pertencerem a associações criminosas, nomeadamente do tipo das associações ou sociedades secretas, ainda que estas não tenham sede ou filiação em Macau nem aqui desenvolvam qualquer actividade.

 

Artigo 16.º

(Dissolução judicial de associações ou

sociedades legalmente constituídas)

As associações ou sociedades do tipo a que se refere o artigo 1.º legalmente constituídas são dissolvidas na decisão judicial que condenar algum ou alguns dos respectivos membros.

 

Artigo 17.º

(Condutas não puníveis)

1. Não é punível a conduta de funcionário de investigação criminal ou de terceiro actuando sob controlo de uma autoridade de polícia criminal que, para fins de prevenção ou repressão criminal, com ocultação da sua qualidade ou identidade, se infiltre na associação ou sociedade secreta, adquira a qualidade de membro, e na sua sequência e a solicitação de quem se dedique às actividades criminosas da associação, aceite, detenha, guarde, transporte ou entregue armas, munições ou instrumentos de crime, dê guarida aos membros, angarie subscrições ou forneça locais para reuniões.

2. A conduta referida no n.º 1 depende de prévia autorização da autoridade judiciária competente, a proferir no prazo máximo de 5 dias e a conceder por período determinado.

3. Em caso de urgência relativa à aquisição da prova, a conduta referida no nº 1 é realizada mesmo antes da obtenção da autorização da autoridade judiciária competente mas deve ser por esta validada no primeiro dia útil posterior, sob pena de nulidade.

4. A autoridade de polícia criminal fará o relato da intervenção do funcionário ou do terceiro à autoridade judiciária competente no prazo máximo de 48 horas após o seu termo.

 

Artigo 18.º

(Protecção de funcionário e de terceiro infiltrados)

1. A autoridade judiciária só ordenará a junção ao processo do relato a que se refere o n.º 4 do artigo anterior se a reputar absolutamente indispensável em termos probatórios, garantindo-se o segredo sobre a identidade do funcionário ou do terceiro.

2. A apreciação da indispensabilidaade pode ser remetida para o termo do inquérito ou da instrução, ficando entretanto o expediente, mediante prévio registo, na posse da autoridade de polícia criminal.

3. Nos casos em que o juiz determine, por indispensabilidade da prova, a comparência em audiência de julgamento cio funcionário ou do terceiro infiltrados, observar-se-á sempre o disposto no n.º 1 do art.º 86.º do Código de Processo Penal procedendo-se de modo a garantir a ocultação da sua imagem, da sua voz e da sua identidade.

4. O conhecimento de quaisquer elementos que possam conduzir à revelação da identidade do funcionário ou do terceiro é reservado à autoridade judiciária.

 

Artigo 19.º

(Regras especiais de processo penal)

1. Nos casos dos crimes dos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º o Ministério Público pode determinar que o arguido detido não comunique com pessoa alguma, antes do primeiro interrogatório judicial.

2. Havendo fundadas razões para crer que o ofendido, uma testemunha, o assistente, a parte civil ou perito, possam, por temor de represálias, vir a des-locar-se para o exterior, ou de qualquer forma manifestar impossibilidade de ser ouvidos em julgamento, a requerimento do Ministério Público, procede-se à tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 253.º e 276.º, com os efeitos da alínea a) do n.º 2 do art. 337.º do Código de Processo Penal.

3. O registo escrito do auto respeitante a recolha de declarações ou depoi-mentos e ao interrogatório do arguido deve, sempre que possível, ser acom-panhado de registo gravado, através de meios magnetofónicos ou audiovisuais, aplicando-se o disposto no n.º 3 do artigo 91.º do Código de Processo Penal.

4. É permitida a leitura em audiência de declarações do ofendido, do assistente, de testemunha, de perito ou da parte civil mesmo que prestadas perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal, quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias sensíveis.

 

Artigo 20º

(Prisão preventiva)

Se o crime imputado for um dos previstos nos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva.

 

Artigo 21º

(Apreensão de coisas e direitos)

1. A autoridade judiciária procede à apreensão de bens imóveis ou móveis, direitos, vantagens, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos depositados em bancos ou outras instituições de crédito, mesmo que em cofres individuais, em nome de arguido ou de terceiro, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com os crimes dos artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º se destinam à actividade criminosa de associação ou sociedade secreta, que constituem o produto ou lucro dessa actividade ou a recompensa emergente dos crimes dos artigos 6º, 7.º, 8.º e 9.º ou que resultaram de transformação ou conversão do produto, lucro ou recompensa de tais actividades ilícitas.

2. As entidades públicas ou privadas, instituições bancárias ou outras instituições de crédito, instituições financeiras ou equiparadas, sociedades civis ou comerciais, repartições de registo ou fiscais não podem recusar o cumprimento de pedido de informação ou apresentação de documentos, quer estes se encontrem em suporte manual ou informático, efectuados pela autoridade judiciária, respeitantes a bens, depósitos ou quaisquer valores a que se refere o n.º 1.

3. Nos casos dos crimes cios artigos 3.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º o arguido está obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe forem feitas pela autoridade judiciária sobre a sua situação económica e financeira, rendimento mensal pro-veniente de actividade profissional e bens próprios, sob pena de incorrer na punição prevista no artigo 323.º do Código Penal.

4. Constitui indício da origem ilícita dos bens, depósitos ou valores a que se refere o n.º 1 a sua manifesta desproporcionalidade face aos rendimentos mensais declarados pelo arguido e a impossibilidade de determinar a licitude da sua proveniência.

5. Provada a origem ilícita, são declarados perdidos a favor do Território os bens, depósitos ou valores apreendidos nos termos do n.º 1.

 

Artigo 22.º

(Defesa de direitos de terceiro de boa-fé)

1. O terceiro que invoque a titularidade de coisas, direitos ou valores sujeitos a apreensão, nos termos do n.º 1 do artigo 21.º, pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue boa fé, indicando logo todos os elementos de prova.

2. Entende-se por boa fé a ignorância desculpável de que as coisas, direitos ou valores se relacionavam com actividades ilícitas.

3. O requerimento a que se refere o n.º 1 é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição.

4. A decisão é proferida pelo juiz logo que se encontrem realizadas as diligências que considere necessárias, salvo se quanto à titularidade das coisas direitos ou valores a questão se revelar complexa ou susceptível de causar perturbação ao normal andamento do processo, casos em que o juiz pode remeter o terceiro para os meios cíveis.

 

Aprovada em de de 1997.

A Presidente da Assembleia Legislativa.

Promulgada em de de 1997.

O Governador.

 


 

Exposição de motivos

O recrudescimento da criminalidade violenta em Macau, nestes últimos tempos, que poderá estar relacionada com as organizações criminosas que actuam no Território, ainda que não signifique um acréscimo da actividade dessas organizações, tem gerado sentimentos comunitários de instabilidade e insegurança que, a não serem tomadas medidas, poderão conduzir a um nocivo desequilíbrio das expectativas de confiança da população na eficácia das instituicões com competência em matéria de segurança e aplicação das leis, mormente dos órgãos de administração da justiça e, até do próprio sistema jurídico.

É consabido que as organizações criminosas patenteiam hoje, no espaço geográfico mundial, estruturas de grande eficácia, caracterizadas pelo domínio e utilização dos mais avançados conhecimentos técnicos e tecnológicos, pela enorme mobilidade entre países e continentes. Os membros das organizações criminosas actuam numa pragmática específica, dado que têm atrás de si um aparelho mais ou menos sofisticado, capaz de os proteger, desde logo, face às entidades com competência em matéria de investigação dos crimes por eles cometidos e assim lhes garantir a impunidade e de criar uma imagem de facilitação da actividade criminosa e, portanto, de eficácia, que beneficia do temor que a sua capacidade de violência provoca nos cidadãos e gera sentimentos de fidelidade e de coesão dificilmente permeáveis e, muito menos, substituíveis por sentimentos de fidelidade ao direito e aos valores que ele tutela.

O combate contra a criminalidade organizada não se reconduz ao combate contra a criminalidade comum. É um combate contra uma forma de poder, um sistema organizado de violência.

Justifica-se e legitima-se, assim, que, desde logo, no plano normativo, concre-tamente, no plano do direito penal, se criem instrumentos destinados a permitir uma mais eficiente concretização dos mecanismos de prevenção e repressão da actividade criminosa destas organizações.

É este o objectivo prosseguido pelo presente diploma que, todavia, tem sub-jacentes duas ideias nucleares.

A primeira a de que a luta contra as organizaçoes criminosas que actuam em Macau não pode significar a negação ou o desvirtuar dos princípios que constituem a espinal medula do sistema jurídico penal de Macau, lhe conferem dignidade e reforçam as expectativas comunitárias na sua validade, os quais encontram amparo na ordem jurídico-constitucional e constituem, sobretudo no plano garantístico dos direitos e liberdades dos residentes de Macau, a um tempo, a expressão de um Estado de Direito Material e o penhor do cabal cumprimento das exigências do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, como foi, em documento público, reconhecido pelo Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas a propósito do Relatório sobre a aplicação do Pacto em Macau.

A segunda, traduzindo, de resto, a convicção dos representantes de insti-tuições do Território que foram ouvidos durante o processo prévio de consultas, a de que o êxito do combate contra as organizações criminosas não depende, ou depende em pequena medida, do reforço da dureza de tratamento desse tipo de criminalidade, no plano da lei penal e processual penal, atente-se na vigência de quase 20 anos da Lei n.º 1/78/M, se esse reforço não fôr acompanhado da criação de mecanismos que possibilitem a sua concretização prática, sobretudo no âmbito da actuação dos órgãos com competência em matéria de prevenção e investigação desta criminalidade.

No presente diploma optou-se por definir o crime de associação ou sociedade secreta, em chinês "Hac Sé Vui", em inglês "Triad Society", autonomamente face ao crime de associação criminosa do artigo 288.º do Código Penal, integrando na descrição típica do crime elementos organizatórios, antropológicos e emergentes do meio social coenvolvente, de modo a que, ao invés do que resultava da definição demasiado restritiva do artigo 2.º da Lei n.º1/78/M, a norma abranja qualquer associação criminosa com as características de sociedade secreta. A descrição típica, seguindo o caminho expresso no artigo 288.º do Código Penal não impõe nem um modelo organizatório nem um modo de revelação, bastando-se com a existência de uma estrutura organizatória, dotada de certa estabilidade ou permanência, destinada à prática de crimes, independentemente da prática dos crimes subjacentes.

Renunciou-se à enunciação das quatro sociedades secretas que constam do artigo 3.º da Lei n.º 1/78/M por se entender que, para além de tal enunciação poder significar um inadmissível reconhecimento normativo, expresso, da existência dessas associações, sem paralelo nos sistemas jurídicos, quer de países da Ásia, quer de países europeus, sempre pecaria por defeito, dado que hoje actuam em Macau outras sociedades secretas.

Razões de política criminal que colocam a tónica na finalidade de prevenção geral, nos planos da intimidação e da integração, limitada, embora pelo princípio da culpa e na finalidade de prevenção especial que leva em conta a perigosidade criminal, determinaram que se reforçasse e diversificasse a punição do crime de associação criminosa, pela criação, por um lado, de penas acessórias, e, de um regime especial no domínio da reincidência, por outro lado, de regras especiais em matéria de prorrogação da pena. Tal regime punitivo é estendido a um conjunto de crimes, aos quais, pela sua reiteração nos últimos tempos e pelo grau elevado de perigo para bens jurídicos importantes, reconhecido comuni-tariamente, ainda que não se prove uma relação directa com a criminalidade organizada, o presente diploma faz corresponder, mais, uma pena agravada.

Entendeu-se dever ser criminalizada a conduta de "invocação de pertença a associação ou sociedade secreta" que traduz, na sua realização típica, como que uma fusão entre os tipos de ameaça e coacção dos artigos 148.º e 149.º do Código Penal, por constituir uma lesão ou perigo de lesão do bem jurídico liberdade pessoal.

Decidiu-se, em correspondência com a norma do n.º 4 do artigo 288.º do Código Penal, estabelecer um regime punitivo particularmente benévolo, que vai da especial atenuação da pena até à dispensa de pena, para os agentes do crime de associação ou sociedade secreta que manifestem uma atitude de colaboração com as autoridades com funções na investigação, reveladora de um esforço sério no sentido de impedir a continuação da actividade criminosa. Tal atitude pode constituir um instrumento de fundamental importancia na descoberta do crime e dos seus autores, dadas as conhecidas dificuldades de prova emergentes do muro de silêncio que o envolve.

No que se refere, estritamente, às dificuldades de prova do crime de associação ou sociedada secreta, julgou-se dever afastar o sistema de presunções legais do artigo 12.º da Lei n.º 1/78/M que se tem revelado de quase nulo interesse no plano da eficácia, dado que não é aplicado pelo tribunal e é de duvidosa com-patibilização com o princípio da "presunção da inocência" reconhecido na grande maioria dos sistemas jurídicos do mundo e que entre nós é tutelado pela Constituição e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Optou-se, contudo, por consagrar um sistema de "indícios probatórios", porque realizando, cabalmente, as finalidades no domínio da investigação prosseguidas pelas "presunções legais", particularmente, permitir desencadear um processo penal, realizar diligências de recolha de prova e, mesmo, introduzir o facto em juizo, não enferma de ilegalidade.

Introduziu-se a figura do "agente infiltrado" com a dimensão e a protecção, mormente no que tange a sua identidade, possíveis, e alargou-se a permissão de leitura dos autos em julgamento a que se refere o artigo 337.º do Código de Processo Penal, particularmente, pelo estabelecimento de um regime especial de recolha de declarações para memória futura (artigos 253.º e 256.º do mesmo Código) . Com a consciência de que as dificuldades de materialização destas opções podem ser minoradas com a futura regulamentação e concretização de um sistema mais perfeito de protecção, quer dos agentes infiltrados, testemunhas, ofendidos e peritos, quer dos arguidos que decidam colaborar com a justiça.

Em matéria de recolha de prove, entendeu-se que o novo Código de Processo Penal dispõe, já, de modernos e adequados instrumentos.

Perante a especial perigosidade para bens jurídicos emergente da cri-minalidade organizada, bem como de determinados crimes que com ela poderão estar relacionados, que impõe exigências particulares no plano da investigação, julgou-se necessário sujeitar o arguido, detido, a um período de incomunica-bi1idade até ao primeiro interrogatório judicial, que, naturalmente, não poderá ultrapassar 48 horas.

Finalmente, salvaguardando-se os direitos de terceiro de boafé, estabelece-se um regime de apreensão de coisas e direitos relativamente aos quais haja fundadas razões para crer que estão relacionados com a criminalidade grave, conside-rando-se indício da origem ilícita de tais coisas ou direitos a sua manifesta despro-porcionalidade face aos rendimentos declarados e a impossibilidade de determinar a licitde da sua proveniência. Cumulativamente, sujeitam-se as entidades públicas ou privadas, as instituições bancárias e financeiras à obrigação de prestar as informações que, nesse âmbito, venham a ser solicitadas pela autoridade judiciária.

Tem-se vindo a constatar, internacionalmente, que a eficiente prossecução das finalidades de prevenção e repressão do crime organizado impõe uma opção legislativa multidisciplinar e diversificada que tome em conta a multiplicidade dos factores que rodeiam o fenômeno e constituem condições objectivas e sub-jectivas para a sua implantação e crescimento. As organizações criminosas, prosse-guindo uma lógica empresarial, beneficiam da sua característica de transnacional idade, quer no plano da impunidade dos seus agentes, quer no processo de dissimulação da origem ilícita dos seus lucros e de sucessivo reinvestimento em actividades lícitas e ilícitas.

Pelo que a luta contra este tipo de criminalidade requer a criação de condições normativas e práticas que possibilitem o combate ao fenômeno de dissimulação da origem dos lucros ilicitamente acumulados e reforcem os canais de cooperação judiciária e policial, internacional e regional, em matéria penal. Disso dependerá a sua eficácia.

Para além do grupo de trabalho que colaborou no estudo que fundamentou o presente diploma de que fizeram parte representantes do Executivo das àreas da Justiça e Segurança, foram ouvidos os magistrados judiciais do Tribunal de Competência Genérica de Macau, o Procurado-Geral Adjunto em Macau, representantes da Associação Geral dos Operários de Macau, da Associação Comercial de Macau e da União Geral das Associações de Moradores de Macau.