3.ª COMISSÃO PERMANENTE

Parecer nº. 2/II/2002

 

Assunto: Análise na especialidade da proposta de lei intitulada "Lei relativa ao cumprimento de certos actos de Direito Internacional".

I

Introdução

A proposta de lei intitulada "Lei relativa ao cumprimento de certos actos de Direito Internacional" foi aprovada formalmente na generalidade em sessão plenária desta Assembleia Legislativa em 26 de Fevereiro de 2002.

A Senhora Presidente da Assembleia Legislativa, pelo Despacho 59/II/2002, do mesmo dia, distribuiu a proposta de lei à 3ª Comissão Permanente para exame na especialidade e emissão de parecer até ao dia 26 de Março de 2002.

A Comissão, para o efeito, reuniu nos dias 5, 12 e 21 de Março para proceder à análise exaustiva da proposta de lei supra mencionada. Na reunião de 12 de Março estiveram presentes representantes do Executivo para esclarecimento de algumas questões. Durante as reuniões, os membros da Comissão analisaram, discutiram e pronunciaram-se amplamente sobre a proposta de lei.

O Executivo acolheu as sugestões formuladas pela Comissão no sentido do aperfeiçoamento técnico-jurídico em sede, designadamente, da redacção das normas da proposta de lei que consagram as definições fundamentais para efeitos de interpretação e aplicação da própria lei e do apuramento da redacção de algumas normas quer em língua portuguesa quer em língua chinesa.

Discutido o articulado da proposta de lei e consideradas as opções e soluções propostas na mesma, cumpre à Comissão pronunciar-se, emitindo o seu parecer o que faz observando a seguinte sistemática para facilidade da exposição e comodidade de referência, nos termos e para os efeitos do artigo 118.º do Regimento:

- 1) Apresentação da proposta de lei;

- 2) Análise da proposta de lei;

- 3) Questões colocadas pela Comissão ao Executivo; e

- 4) Conclusões.

 

II

Análise na especialidade

1 – Apresentação da proposta de lei

O direito das organizações internacionais, isto é as normas emitidas por organizações internacionais, tratem-se de organizações internacionais de integração – v.g. as comunidades europeias – tratem-se de organizações internacionais de cooperação, como é o caso da ONU, deriva dos poderes normativos que os respectivos órgãos tenham face aos Estados-membros, nos termos do respectivos tratados constitutivos.

Estes actos de direito internacional não constituem direito internacional geral ou comum1  nem direito internacional convencional2 . De acordo com a Nota Justificativa que acompanha a supra mencionada proposta de lei, "no plano internacional, as normas emanadas por esses órgãos podem ter ou não força obrigatória geral, efeito directo, aplicação imediata e a sua vigência pode ser ou não delimitada. No plano interno, quando as normas internacionais entram em vigor na ordem jurídica internacional, cabe aos seus destinatários – a partir do momento em que a elas se encontrem externamente vinculados – a obrigação de agir em conformidade com os nelas disposto. Essa obrigação pode, consoante a natureza jurídica da própria norma internacional, ser uma obrigação de meios, de resultado ou simultaneamente de meios e resultado.

Se é verdade que esta iniciativa legislativa encontra como causa próxima os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 e, nessa medida, o seu objecto concreto são as Resoluções do Conselho de Segurança da ONU, fica claro, pela leitura do seu artigo 2.º que o seu objecto é assegurar "o cumprimento das normas, que não são exequíveis por si mesmas, constantes de actos internacionais, emanados por órgão internacional competente, aplicáveis na Região Administrativa Especial de Macau, designadamente, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas."

Em termos gerais e abstractos, o que está em causa é, pois, a inexequibilidade de normas com força obrigatória geral inscritas em certos actos de direito internacional. Isto é, normas que apesar de serem dotadas da força obrigatória geral requerem, para que possam ser aplicadas a nível interno, de ser complementadas.

Tal é o caso das resoluções do Conselho de Segurança da ONU, mais precisamente da sua parte decisória. Com efeito, e conforme é esclarecido pela Nota Justificativa, "nos termos dos artigos 41.º e 42.º conjugados com o artigo 39.º da Carta da ONU, o Conselho de Segurança, tendo constatado a existência de ameaça de ruptura ou a própria ruptura da paz ou de acto de agressão, está autorizado a adoptar, para além de recomendações, verdadeiras decisões estabelecendo as medidas bélicas ou não bélicas – isto é, sanções – necessárias à manutenção ou restabelecimento da paz e segurança internacionais. Da conjugação dos citados artigos 41.º e 42.º com o disposto nos artigos 24.º n.º 1 e 25.º da Carta da ONU, resulta a força obrigatória geral.

Nos termos da supra mencionada Nota Justificativa, é ainda esclarecido que os bens ético-jurídicos protegidos pelas sanções são a manutenção ou restabelecimento da paz e segurança internacionais que são o pressuposto e fundamento jurídico das sanções do Conselho de Segurança nos termos da Carta da ONU.

A parte decisória das mencionadas resoluções do Conselho de Segurança da ONU tem, pois, força obrigatória geral, mas para que se possa assegurar o efectivo cumprimento de algumas das suas normas é condição que a nível interno se legisle em seu complemento.

Repare-se, todavia, que, como já se explicitou, apesar de a presente iniciativa legislativa ter em vista, em concreto, as resoluções do Conselho de Segurança da ONU a verdade é que ela foi perspectivada em termos gerais e abstractos na medida em que se pretende que a lei se aplique a outros actos de direito internacional similares.

Convém, igualmente, ter presente que no caso específico das resoluções do Conselho de Segurança da ONU estamos em presença de obrigações internacionais da República Popular da China que a vinculam relativamente à totalidade do seu território nacional na medida em que segundo o tratado constitutivo da ONU – a Carta, já referenciada – a participação nesta organização internacional está reservada a Estados. Assim sendo, um eventual incumprimento na Região no acatamento e/ou "aperfeiçoamento" das normas em questão tem como consequência fazer incorrer a República Popular da China em incumprimento de obrigações a que está vinculada internacionalmente em relação à totalidade do seu território.

De acordo ainda com a Nota Justificativa, "como o direito internacional a que a República Popular se encontra externamente vinculada em relação à totalidade do seu território, uma vez publicado no Boletim Oficial da RAEM, automaticamente faz parte do direito interno, prevalecendo sobre o direito ordinário, só é necessário legislar na RAEM quando esse direito internacional em concreto o exija, isto é, mais explicitamente, quando a norma de direito internacional não é por si mesma exequível."

A proposta de lei contém, assim, um acervo de normas destinadas a criar um mecanismo sancionatório que imprima aplicabilidade às normas de direito internacional penal que em princípio se limitam a impor a proibição de uma conduta faltando-lhes os restantes elementos que integram um tipo penal.

2 – Análise da proposta de lei

Tendo em consideração a complexidade e densidade técnicas da proposta de lei em análise, parece conveniente esclarecer previamente algumas questões relativamente ao direito internacional no ordenamento jurídico local.

Suscitam-se vários assuntos relativos à aplicação do direito internacional na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). De facto, se bem que o que surja como mais imediato seja saber qual o direito internacional que vigora na RAEM, de não menos importância é saber em que termos é que esse direito vigora (desde quando e como).

Juridicamente, coloca-se, em primeiro lugar, o problema da vinculação na ordem externa e, em segundo lugar, o da recepção do direito internacional pelo direito interno.

Do ponto de vista do direito internacional e em função do sujeito e da forma da vinculação externa verifica-se actualmente quanto à RAEM a existência das seguintes situações:

a) tratados3  de que a RPC é parte contratante e que, por virtude de respeitarem a matéria de defesa, relações externas ou porque pela sua própria natureza jurídica obrigam os Estados deles partes em relação à totalidade do seu território nacional, se passaram internacionalmente a aplicar automaticamente na RAEM em 20/12/99, não tendo a RPC efectuado quanto a eles quaisquer diligências jurídicas, mas tão só diligências diplomáticas;

b) tratados que, independentemente de a RPC ser ou não deles parte, já se aplicavam em Macau, cuja continuação da aplicação foi acordada no GLC e as obrigações e direitos de parte deles derivadas em relação à RAEM foram assumidas externamente pela RPC;

c) tratados que já se aplicavam, cuja continuação da aplicação foi também acordada no GLC, mas relativamente aos quais, por virtude de Macau deles ser sujeito por direito próprio, a RPC não assumiu externamente as obrigações de parte deles derivadas em relação à RAEM, tendo apenas efectuado a necessária notificação ("autorização") da manutenção da qualidade de sujeito de direito internacional;

d) outros instrumentos de direito internacional a que a RPC está internacionalmente vinculada e que se passaram internacionalmente a aplicar automaticamente na RAEM em 20/12/994.

A Lei Básica contém vários preceitos relativos à questão da vinculação internacional, no entanto nada dispõe em concreto quanto à recepção do direito internacional pelo direito interno da RAEM. A conclusão quanto à segunda questão terá que se basear numa construção que parte do que a Lei Básica dispõe quanto à primeira e da salvaguarda da coerência do todo do sistema.

O parágrafo 1 do artigo 13.º da Lei Básica estipula que o Governo Popular Central é responsável pelos assuntos externos da RAEM – este é, pois, o princípio geral no que toca ao trato internacional, mormente à vinculação externa, da RAEM.

No entanto, no parágrafo 3 desse mesmo artigo 13.º, estipula-se que o Governo Popular Central autoriza a RAEM a tratar, por si própria e nos termos da Lei Básica, dos assuntos externos "concernentes". A natureza e a delimitação (em termos de objecto e de extensão) desta autorização de condução de assuntos externos releva, pois, de vários outros normativos da Lei Básica.

Em certos casos é apenas prevista a possibilidade de a autorização vir a ser concedida, ao passo que, noutros casos, ela é efectivamente concedida, isto é, não é meramente a possibilidade de autorização, mas também a própria autorização em si mesma que se encontra já expressamente consagrada. É a diferença do que acontece, por exemplo, quanto à possibilidade de delegação prevista no artigo 94.º5 versus a delegação concedida no artigo 136.º6. No artigo 94° da Lei Básica utiliza-se a expressão "com o apoio e a autorização do Governo Popular Central a Região Administrativa Especial de Macau pode desenvolver(…)" ao passo que no artigo 136.º a redacção empregue não é condicionada naqueles termos, estipulando-se que a RAEM "pode (…) manter e desenvolver, por si própria, relações, celebrar e executar acordos com países (…) e organizações internacionais (…) nos domínios apropriados (…)".

Em termos técnico-jurídicos, na primeira hipótese, os respectivos preceitos da Lei Básica consubstanciam apenas lei de habilitação, faltando o comando relativo ao acto de delegação. Na segunda hipótese, os normativos da Lei Básica englobam simultaneamente os comandos relativos à lei de habilitação e ao acto de delegação de poderes, configurando uma verdadeira delegação de poderes "ope legis".

A Lei Básica prevê, pois, em matéria de condução de relações externas delegações de poderes na RAEM cujo conteúdo em termos de objecto e de extensão é diferente.

Da conjugação do citado parágrafo 3 do artigo 13° da Lei Básica com os seus outros artigos que se referem em concreto às situações em que os assuntos externos podem ser conduzidos e, ainda, com o disposto nos seus artigos 45°, parágrafo 1, 50°, parágrafo 13 e 64°, parágrafo 3, resulta comum a todas as mencionadas situações de delegação de poderes em matéria de assuntos externos o facto de o delegante dos poderes ser a RPC, através do seu órgão o Governo Popular Central e o delegado dos poderes ser a própria Região, mais precisamente o seu órgão executivo, o Governo da RAEM.

O artigo 138.º refere-se expressamente apenas à aplicação de acordos internacionais, devendo portanto entender-se que em causa neste preceito estão todos os instrumentos de direito internacional independentemente da sua natureza jurídica – tratados, convenções, acordos, decisões, etc. - que escapam ao âmbito da autorização (delegação de poderes), ou seja, que extravasam os domínios apropriados da autonomia da RAEM.

O artigo 138.º opera também, nos seus parágrafos 1 e 2, uma distinção entre os tratados de que a RPC é (ou será) parte contratante e aqueles de que a RPC não é parte, mas que vigoravam internacionalmente para Macau antes da reunificação. Obviamente, o parágrafo 2 do artigo 138.º tem um campo de aplicação material e temporal específico, que determinam a natureza especial da norma.

Os princípios gerais quanto à vinculação externa da RPC em relação à RAEM são indubitavelmente os que decorrem da conjugação do parágrafo 1 do artigo 13.º com o parágrafo 1 do artigo 138.º, em que se refere que a decisão de aplicação compete ao Governo Popular Central, e que será tomada em função das necessidades da RAEM e após consulta ao Governo da Região. A RPC é, pois, quem se vincula externamente, sendo o processo para tal (aprovação, ratificação, etc.) o definido pela lei nacional vigente na RPC7, a que o processo previsto no parágrafo 1 do artigo 138° da Lei Básica, enquanto lei constitucional, introduz uma especialidade.

A forma jurídica a utilizar para tornar aplicáveis na RAEM os tratados a que se refere o parágrafo 1 do artigo 138° não é expressamente estipulada, mas não pode deixar de ser vista como muito semelhante a uma "extensão" de uma lei nacional.

No entanto, ainda que os processos para tornar aplicável uma lei nacional ou o direito internacional convencional reservado sejam análogos, as situações não são confundíveis.

Ao contrário das leis nacionais, que em princípio não se aplicam na RAEM, o direito internacional a que a RPC se obrigue em relação à totalidade do seu território nacional tem de se aplicar na RAEM. Por este motivo, referimos que o processo para tornar aplicável o direito internacional a que a RPC esteja ou se venha a vincular em relação à RAEM é um processo de extensão (interno). A responsabilidade externa da RPC em relação a essa aplicação na RAEM depende do início do momento de vigência a nível externo8 da respectiva obrigação internacional.

Não há, nem pode haver, lugar a uma dupla recepção. Daí que, como mencionámos, as normas do parágrafo 1 do artigo 138° da Lei Básica sejam normas especiais em relação às normas gerais relativas à conclusão de tratados pela RPC (aprovação interna e vinculação externa) e daí, igualmente, que o processo de extensão à RAEM tenha que ser visto também como uma mera componente especial do sistema de recepção do direito internacional pelo direito interno da RPC9.

A unidade e a publicidade do Direito sempre foram princípios fundamentais do sistema jurídico de Macau. A Lei Básica consagrou o princípio da continuidade do sistema jurídico, pelo que tem de se entender que se mantêm enquanto seus princípios fundamentais.

Não havendo lei da RAEM relativa ao modo e à forma de conclusão de acordos pela RAEM, não se poderá falar com propriedade de requisitos internos de aprovação.

A publicação oficial obrigatória é o único requisito de recepção. A aprovação interna devia logicamente ser prévia à vinculação externa, a que por sua vez se devia seguir a publicação. Acrescendo, que a vigência interna devia ainda estar condicionada à vigência externa. Mas isso não sucede, porque não há lei que assim o disponha. Até lá, o caminho terá que ser o inverso, ou seja, se se contraiu a obrigação na ordem externa é porque se pretende fazê-la valer internamente, sendo a aprovação interna implícita à publicação, que é corolário da aprovação.

No domínio do direito internacional convencional (multilateral ou bilateral) a publicidade dos actos (que não só os tratados) é especialmente importante, não só porque obviamente é necessário que sejam conhecidos os textos dos tratados (que valem como lei e portanto é preciso que se saiba que existem) mas porque é também essencial saber desde quando é que se aplicam e como é que se aplicam.

Mas, para além dos tratados, há ainda outros tipos de actos que carecem de publicação por terem efeito directo e aplicação imediata10.

É, portanto, a partir da publicidade dos textos dos tratados, dos actos a eles respeitantes, bem como demais actos que haja de cumprir que se torna possível no nosso sistema a própria aplicação do direito internacional.

Feitas estas breves considerações, a análise da proposta de lei em apreço fica facilitada pela melhor percepção da natureza das normas internacionais aqui em causa e da sua relação com o ordenamento jurídico da Região.

A Comissão dedicou especial atenção a algumas matérias que pela sua importância reclamavam um maior cuidado e atenção. Sobretudo, pela natureza penal das normas em causa.

O princípio da unidade, consagrado no artigo 3.º da proposta de lei, que materializa a opção pela já referida técnica legislativa mista, nos termos da qual as normas internacionais e as normas internas agora editadas formam uma unidade: a do Direito.

Esta solução mereceu a aprovação dos membros da Comissão mormente pela sua adequação aos princípios e normas da Lei Básica, supra referenciados e explicados, e ao sistema de recepção do Direito Internacional pelo direito interno local também já explicitado.

A comissão prestou particular atenção ao âmbito da presente proposta de lei, na medida em que o seu artigo 4.º n.º 1 faz aplicar a lei a todos os factos praticados na RAEM ou a bordo de navio ou aeronave matriculada na Região por pessoas singulares ou colectivas. A inclusão das pessoas colectivas justifica-se não só em face dos bens ético-jurídicos em causa como pelo facto de as condutas proibidas poderem ser praticadas quer por pessoas singulares quer por pessoas colectivas. O número 2 do mesmo artigo estende a aplicação da lei a factos proibidos praticados fora da Região por pessoas singulares residentes ou pessoas colectivas constituídas segundo a lei da Região, independentemente do lugar da prática dos factos e do lugar onde se encontre o agente. Este vasto âmbito de aplicação pretende ir ao encontro de certas recomendações do Conselho de Segurança da ONU formuladas nesse sentido, mas também porque esta técnica é uma tendência crescente do direito internacional penal.

Outro aspecto que mereceu uma reflexão e ponderação particulares prende-se com a aplicação no tempo do Direito que resulta da unidade entre as normas internacionais e as internas. Com efeito, tratando-se, como é o caso, de normas de direito internacional penal e atendendo ao facto de que as sanções do Conselho de Segurança da ONU (que nunca é de mais repetir, constituem o paradigma normativo tido em conta pelo legislador da proposta de lei) têm uma duração temporal limitada colocam-se um conjunto de problemas que o artigo 10.º, na perspectiva da Comissão, resolve cabalmente.

Assim, o número 1 deste artigo fixa um princípio nuclear que se reconduz ao princípio da legalidade, que sempre teria que ser observado na ordem jurídica local, segundo o qual a prática – intencional ou negligente – de factos previstos nos tipos penais contidos na proposta de lei só é punível enquanto e na medida em que tais factos sejam objecto de uma sanção ou de uma norma internacional sancionatória inserida em um acto de direito internacional aplicável e publicado no Boletim Oficial da RAEM em momento anterior ao da prática dos factos.

O número 2, do supra referenciado artigo, vem esclarecer que depois da publicação da sanção ou de uma norma internacional sancionatória no Boletim Oficial da RAEM - e enquanto durar a sua vigência, os factos proibidos praticados durante esse período continuam a ser puníveis mesmo que o órgão competente da organização internacional em causa adopte um acto que adie, suspenda ou ponha termo à sanção ou à norma internacional sancionatória. Isto é, se um determinado facto proibido for praticado durante a vigência da sanção, ainda que posteriormente essa sanção venha a cessar esse facto continua a ser punível.

O número 3 daquele artigo estabelece ainda um mecanismo fundamental. Assim, a partir do momento em que o órgão internacional competente adopte um acto que adie, suspenda, ou ponha termo a uma sanção ou a uma norma internacional sancionatória imposta por esse órgão, independentemente da sua publicação no Boletim Oficial da RAEM, a consequência jurídica inevitável é que o facto que seja praticado após a data de entrada em vigor daquele acto internacional na ordem jurídica internacional deixe de ser punível. A razão é simples e prende-se com as garantias típicas do princípio da legalidade, se na ordem jurídica internacional não está em vigor uma determinada sanção então não pode ocorrer qualquer punibilidade por referência a essa sanção na ordem jurídica interna.

O artigo 11.º ao desenhar uma ampla aplicação material da proposta de lei vem, uma vez mais, ao encontro das actuais tendências do direito internacional penal e corresponde ao conteúdo de certas recomendações do Conselho de Segurança da ONU - os crimes ali previstos aplicam-se igualmente a quem pratique facto que, preenchendo os elementos do respectivo de crime, se encontre previsto em uma norma internacional sancionatória que é imposta a uma zona ou região delimitada de vários Estados, bem como a pessoas singulares ou colectivas ou entidades (partidos políticos, exército, grupo ou organização objectivamente identificada) mas não a um Estado.

A mesma ordem de razões explica as opções de política legislativa em sede da responsabilidade penal das pessoas colectivas (que abrangem as sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e as meras associações de facto) e das penas principais que lhes podem ser aplicadas.

A Secção II do Capítulo III da proposta de lei compreende os crimes em especial que as próprias resoluções do Conselho de Segurança impõem e têm em vista as condutas que geralmente são proibidas no âmbito do direito internacional penal actual.

3 - Questões colocadas pela Comissão ao Executivo

Os membros da Comissão, conscientes da complexidade e densidade da matéria objecto da proposta de lei, transmitiram ao representantes do Executivo a sua apreciação pelo elevado e apurado grau técnico da proposta de lei em análise, bem como da detalhada Nota Justificativa que a acompanha.

A Comissão solicitou aos representantes do Executivo um esclarecimento sobre a técnica legislativa utilizada para proceder à "incorporação" do direito internacional penal constante, por exemplo, da parte decisória das resoluções do Conselho de Segurança da ONU, no ordenamento jurídico local.

O Executivo expôs, resumidamente, as razões que conduziram à opção pela chamada técnica mista, salientando, sobretudo que as alternativas – para além da mencionada técnica mista - consistiam na solução pela dupla incriminação ou da incriminação global por reenvio puro.

A solução pela dupla incriminação não foi acolhida porquanto implicaria que a nível interno se reproduzisse a conduta proibida (no caso de uma resolução do Conselho de Segurança a sua parte decisória com força obrigatória geral) numa lei interna onde também se procederia à tipificação de os elementos constitutivos em falta na norma sancionatória internacional (v.g. a determinação da medida da pena e das multas, a punibilidade ou não da tentativa, etc). Esta solução não foi acolhida porque é uma técnica legislativa em desuso na medida em que pode dar lugar a discrepâncias entre a norma internacional e as normas internas.

Também a técnica da incriminação global por reenvio puro foi rejeitada já que o carácter temporal das sanções do Conselho de Segurança (que, repete-se, são o objecto imediato da presente iniciativa legislativa) iria levantar problemas face aos princípios da legalidade e da publicidade vigentes no ordenamento local, na medida em que segundo esta solução a nível interno proceder-se-ia tão só ao puro reenvio para a norma internacional.

A técnica mista foi a solução preferida desde logo porque é compatível com as disposições da Lei Básica que editam os limites da autonomia e o seu exercício – sobretudo perante a reserva da competência do Governo Popular Central em matéria de relações externas -, evitando-se, assim, um sistema de dupla recepção do direito internacional pelo direito local.

Depois, porque a técnica mista ao determinar a unidade das normas internacionais e internas esclarece que o Direito é um só e permite o mecanismo segundo o qual as disposições penais constantes da proposta de lei em apreço têm uma vigência não temporalmente delimitada e dizem respeito a infracções criminais especiais que, essas sim, são estabelecidas por normas que valem para um determinado período de tempo – tenha-se presente que as sanções do Conselho de Segurança da ONU são editadas perante a ameaça de ruptura ou ruptura da paz e segurança internacionais e que logo que a situação de ameaça de ruptura ou ruptura da paz e segurança internacionais cesse em consequência termina a vigência das sanções destinadas a esse efeito.

As disposições penais editadas pela presente proposta de lei constituem normas que estão em vigor no sistema legal local, mas cuja aplicação se faz por referência a condutas proibidas temporalmente – infracções – inseridas em normas internacionais.

Isto é, durante a vigência da norma internacional as normas internas completam-na no sentido de permitir a sua aplicabilidade – a sua exequibilidade; a partir do momento que termine a vigência da norma internacional, a conduta ou condutas aí proibidas deixam de o ser - e, portanto, as normas penais inseridas na proposta de lei em análise não são aplicáveis para lhe emprestar execução.

A Comissão pretendeu ainda que fosse prestado um esclarecimento sobre o número 4 do artigo 9.º da proposta de lei. Com efeito, o mencionado preceito diz respeito aos pedidos de isenção, que sejam permitidos por um determinado acto de direito internacional que consagre excepções às proibições por ele impostas, mais concretamente aos formulários de preenchimento obrigatório, que tenham que acompanhar o pedido de isenção. Nesse sentido, a questão colocada referia-se à língua em que esses formulários são redigidos e, concretamente, se se iria proceder à sua tradução para língua chinesa desses formulários e se eles poderiam ser entregues redigidos em língua chinesa. O Executivo adiantou que o Conselho de Segurança pode escolher uma das línguas autênticas da ONU, que incluem a língua chinesa, mas que em princípio é adoptada a língua inglesa. Nestes termos, adiantou o Executivo que no âmbito da Administração ter-se-á que encontrar um mecanismo de auxílio aos eventuais interessados que permita o preenchimento dos referidos formulários.

O artigo 7.º n.º 7 da proposta de lei dispõe que "as entidades de fiscalização têm o dever de emitir instruções e de as comunicar às entidades, públicas ou privadas, que estejam sob a sua orientação, coordenação ou supervisão sempre que a complexidade dos procedimentos a observar por virtude de acto internacional aplicável assim o exija." O artigo 8.º, em consequência, estabelece os requisitos das comunicações.

A Comissão pretendeu saber qual era o âmbito e função das instruções/ comunicações a emitir pelas entidades de fiscalização. O Executivo referiu que as entidades de fiscalização, perante a complexidade de alguns procedimentos, têm o dever de esclarecer e informar as entidades públicas ou privadas que, estando sob a sua orientação, coordenação ou supervisão, concretamente são responsáveis pela implementação de medidas de execução. Neste sentido, as comunicações deverão conter todos os elementos necessários que permitam aos seus destinatários à adopção das medidas concretas. O Executivo apontou como exemplo as instruções da Autoridade Monetária de Macau, relacionadas com fundos proibidos, dirigidas aos operadores que exercem a sua actividade sob a sua supervisão.

Perante a complexidade das matérias em questão, a Comissão entende que se trata de uma solução ajustada e cuja importância deve ser frisada, recomendando, assim, ao Executivo que as mencionadas instruções/comunicações sejam um expediente que permita aos destinatários uma ampla compreensão das obrigações em causa porquanto, pelo menos no caso das sanções do Conselho de Segurança da ONU, se está perante matéria penal que aconselha sempre a cautela imposta pelos bens jurídicos em causa.

A Comissão solicitou ao Executivo que prestasse um esclarecimento sobre as opções pelas molduras penais inscritas nos tipos penais constantes da proposta, designadamente, se se tinha procedido a um estudo de direito comparado e se os princípios que inspiram as penas e as suas medidas no âmbito do direito penal local tinham sido tidos em conta. O Executivo explicou que procedeu a uma investigação no âmbito do direito comparado para apurar o tipo de soluções que outros ordenamentos têm consagrado, mas que se teve sempre presente a necessidade de harmonizar as medida das penas previstas na proposta de lei com as penas previstas no Código Penal para crimes análogos. Igualmente no que concerne às multas se teve em atenção a tradição do nosso ordenamento por montantes pecuniários não muito elevados, ainda que o Executivo tenha tido em consideração que o factor dissuasório das multas só pode operar se os montantes envolvidos forem expressivos.

4 – Conclusões

A Comissão entende que do exame na especialidade da proposta de lei intitulada "Lei relativa ao cumprimento de certos actos de Direito Internacional" resultam as conclusões que de seguida se observam:

1 – As soluções jurídicas encontradas para emprestar exequibilidade a certos actos de direito internacional aplicáveis na RAEM, emanados de órgãos competentes de Organizações internacionais, designadamente o fulcral princípio da unidade, previsto no artigo 3.º, constituem opções de política legislativa adequadas à regulamentação que é mister produzir e estão de acordo com o feixe de princípios e normas da Lei Básica da Região que fixam as competências do Governo Popular Central e da Região em sede de trato internacional, bem como com os princípios da legalidade e da publicidade e ainda com o disposto nos Códigos Penal e de Processo Penal vigentes;

2 – O impacto dos princípios e normas da proposta de lei sobre o ordenamento jurídico local respeita as traves mestras do sistema legal local e vai editar legislação que permitirá a exequibilidade na RAEM de certos actos de direito internacional, nomeadamente as sanções do Conselho de Segurança da ONU, dando, assim, cumprimento a obrigações internacionais que, no caso das mencionadas sanções, são obrigações da República Popular da China na medida em que resultam dos seus compromissos no âmbito da ONU; e

3 – Nestes termos, é entendimento da Comissão, após o exame na especialidade, que a proposta de lei intitulada "Lei relativa ao cumprimento de certos actos de direito internacional" reúne os requisitos regimentais, formais e substanciais, para ser submetida a Plenário, para efeitos de discussão e votação na especialidade.

Macau, aos 21 de Março de 2002.

A Comissão, Philip Xavier (Presidente) – Cheang Chi Keong (Secretário) – Hoi Sai In – João Bosco Cheong – Kou Hoi In – Leonel Alberto Alves – Vitor Cheung Lup Kwan – Iong Weng Ian.

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5 Para facilitar tomaremos o artigo 94.º, que se refere a acordos internacionais de assistência jurídica, como exemplo deste tipo de delegação, mas não se trata de um caso único – cf. o artigo 140.º, relativo aos acordos de abolição de vistos ou os artigos 141.º e 142.º estabelecimento de representações no exterior, etc. Aliás, a Lei Básica contém outras referências implícitas a este tipo de delegação, como acontece nos artigos 116.º e 117.º referentes aos sistemas de exploração e gestão, respectivamente, dos transportes marítimos e da aviação civil. Os tratados internacionais nestes domínios são normalmente reservados e estão para além da autorização, mas estes artigos ao permitirem o registo de embarcações e a emissão dos respectivos certificados sob a denominação "Macau, China" e a definição do sistema de gestão da aviação civil têm que ver com a possibilidade de cumprimento autónomo de obrigações internacionais decorrentes de tratados reservados e até com a possibilidade de ser parte em certos acordos de aviação civil – de execução dos tratados reservados aos Estados – visto que os mencionados sistemas de gestão são internacionalmente definidos por via de acordos.

6 O artigo 136.º é geral, mas há outras referências ou remissões para este, cf. por exemplo o artigo 112.º.

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7 Cf. a Constituição da RPC, na última redacção que lhe foi dada em 15/3/99. O Conselho de Estado exerce os poderes de condução das relações externas e de conclusão de tratados (n.º 9 do artigo 89.º). O Comité da Assembleia Popular decide sobre a ratificação ou abrogação de todos os tratados internacionais importantes (n.º 14 do artigo 67.º) e o Presidente da RPC, de acordo com a decisão do Comité Permanente, ratifica-os ou abroga-os (artigo 81.º). Vide, ainda, a Lei da RPC relativa ao Procedimento de Conclusão dos Tratados, adoptada na 17.ª Reunião do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional e promulgada em 28/12/90.

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8 Note-se que o momento da vinculação externa pode não ser coincidente com o inicio de vigência a nível internacional.

9 Só seria possível outro entendimento se a RPC fosse um Estado federado, que não é.

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10 Há tratados constitutivos de organizações internacionais que impõem aos Estados-membros a obrigação de aplicar certas das decisões dos seus órgãos competentes imediatamente com efeito directo – obrigação de meios e de resultado – ou apenas, de as tornar aplicáveis imediata ou mediatamente (num prazo pré estabelecido), deixaando-lhes liberdade de escolha quanto à forma de atingir o resultado visado pelas normas – obrigação só de resultado. Exemplo do primeiro tipo de obrigação são certas decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas (cf. artigo 24° da Carta das Nações Unidas) ou os Regulamentos da União Europeia (UE), exemplo do segundo tipo são as Directivas da UE.