* Os dados constantes desta página servem somente para consulta, o que consulta da edição ofícial.

 

COMISSÃO EVENTUAL DESTINADA A

ACOMPANHAR E PARTICIPAR NA ELABORAÇÃO

DOS PROJECTOS RELATIVOS AOS CÓDIGOS CIVIL,

PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL

Parecer n.º 2/99

Assunto: Projecto do Código Civil de Macau.

I — INTRODUÇÃO

1. No dia 3 de Fevereiro de 1997, a Assembleia Legislativa (AL), reunida em sessão plenária, deliberou a criação desta comissão eventual, nos termos do artigo 42.º do seu regimento, em aprovação de uma proposta nesse sentido dos Senhores Deputados Lau Cheok Va, Jorge Neto Valente, Leonel Alberto Alves e Raimundo Arrais do Rosário .

2. Na base desta iniciativa estava a sentida «necessidade de a Assembleia acompanhar e participar activamente, em coordenação com o Executivo, na elaboração dos projectos dos Códigos Civil, Processual Civil e Comercial» .

3. A metodologia a adoptar para a prossecução deste desiderato já havia sido, aliás, objecto de contactos entre os responsáveis governativos e a Mesa da AL desde o início da legislatura, conforme foi então recordado .

4. O articulado do projecto do novo Código Civil de Macau foi paulatinamente enviado à AL ao longo de cerca de um ano, à medida em que ia sendo elaborado e traduzido, mas com particular incidência nos derradeiros dois meses de 1998. Assim, se o Livro I deu entrada logo em 13 de Janeiro daquele ano, já o Livro II apenas foi disponibilizado em 27 de Outubro, o Livro III em 5 de Novembro e, finalmente, os Livros IV e V em 6 de Janeiro do corrente ano. Quanto ao projecto de decreto preambular, apenas foi entregue à Comissão Eventual na última reunião de trabalho com o Executivo, em 25 de Maio passado, já com o projecto do presente parecer concluído havia várias semanas, tendo este sido, também por isso, objecto de posteriores adaptações.

5. Os trabalhos da Comissão acompanharam, naturalmente e como não poderia deixar de ser, este ritmo e desenvolveram- se, assim, ao longo de idêntico período, mas de forma também mais concentrada na actual sessão legislativa, mormente através de diversas reuniões com o Senhor Secretário-Adjunto para a Justiça (SAJ), Dr. Jorge Noronha Silveira, e elementos da equipa responsável pelo projecto, encabeçada pelo Dr. Miguel Urbano.

6. Como bem salienta o SAJ na sua «nota de abertura» ao texto do projecto publicado sob a forma de livro, esta coordenação de esforços entre os dois órgãos de governo próprio do Território permitiu a conjugação da «imprescindível qualidade técnica com o efectivo conhecimento da realidade local», tendo «ajudado decisivamente na adequação política e social das soluções consagradas». E o acolhimento no texto final de diversas sugestões apresentadas pelos membros da Comissão é bem prova da importância dada pela coordenação do projecto ao papel da AL neste processo.

7. Justifica-se, pois, de todo a Comissão manifestar aqui a sua satisfação pela forma aberta e participada como o Executivo soube conduzir tão monumental, complexa e exigente tarefa em tempo útil, apesar de tão limitado, face ao aproximar da data da transferência do exercício da soberania sobre Macau em 19 de Dezembro próximo.

8. A terminar, afigura-se oportuno e fundado referir que a Comissão é aqui instada pronunciar-se em circunstâncias algo ingratas, pois, além das restrições temporais a que também se vê sujeita — de modo a não contribuir para qualquer retardamento da entrada em vigor do novo texto legal —, fá-lo sem acesso à última versão disponível do articulado, do que resulta o desconhecimento das novas soluções e acertos que terão certamente resultado das derradeiras reuniões com o Executivo (realizadas a 2 e 9 de Fevereiro — portanto, já depois de publicado o texto actualmente disponível —, com nova ronda em 21 e 25 de Maio passado), bem como da apresentação e discussão pública do projecto (a 27 de Fevereiro) e ainda dos trabalhos em curso no Grupo de Ligação Conjunto.

II — NOTA JUSTIFICATIVA DO PROJECTO

9. O actual Código Civil de Macau é, em larga medida, o mesmo que vigora na República; isto é, o articulado aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966, estendido ao Território pela Portaria n.º 22 869, de 4 de Setembro de l9674, modificada pela Portaria n.º 318/74, de 24 de Abril5.

10. Nos termos do artigo 2.º do primeiro daqueles diplomas, o Código Civil entrou em vigor em Portugal a 1 de Junho de 1967, com excepção do disposto nos artigos 1841.º a 1850.º, que somente começou a vigorar em 1 de Janeiro seguinte. Em relação a Macau, houve um diferimento de sete meses: entrada em vigor do código a 1 de Janeiro de 1968, com a mesma ressalva para aqueles preceitos, com início de vigência protelado para 1 de Agosto.

11. Ao longo de quase trinta e dois anos de vigência, o seu conteúdo foi quase outras tantas vezes directa ou indirectamente alterado na República (trinta e uma modificações), embora só em duas situações se tenha processado a extensão a Macau dessas novas opções do legislador — quando da publicação local dos Decretos-Leis n.os 261/75, de 27 de Maio, e 496/77, de 25 de Novembro7. Terá havido uma outra extensão, mas bizarra: antes deste último diploma, o Decreto-Lei n.º 605/76, de 24 de Julho, alterou em Portugal a redacção de quatro preceitos do Código Civil, além de diversos do Código de Processo Civil. Sucede que este só foi aqui publicado volvidos onze anos, em 6 de Outubro de 1987! Ora, nessa data já o seu contemporâneo Decreto-Lei n.º 496/77, que também alterara, entre outros, aqueles mesmos artigos do Código, havia sido publicado em Macau; concretamente, em 13 de Abril de 1978! Em suma, quando o Decreto-Lei n.º 605/76, cumprido o requisito da sua publicação no B.O.M., entrou supostamente em vigor no Território, já estava revogado pelo Decreto-Lei n.º 496/77, à data já aqui em aplicação!

12. O texto aqui vigente foi igualmente objecto de duas modificações directas, operadas pelos Decretos-Leis n.os 32/91/M, de 6 de Maio, e 36/96/M, de 8 de Julho, juntando-se a estas as resultantes da entrada em vigor do novo regime da proprie-dade horizontal, aprovado pela Lei n.º 25/96/M, de 9 de Setembro.

13. Acresce que, em bom rigor, nem a própria versão original do Código Civil chegou a vigorar integralmente no Território, dado a respectiva portaria de extensão9 ter ressalvado «a legislação privativa de natureza civil, emanada dos órgãos legislativos metropolitanos ou provinciais, que vigorar em cada província ultramarina» (artigo 3.º, n.º 2), o que, como refere José Gonçalves Marques, «teve particular alcance em matéria de arrendamento», uma vez que permitiu a continuidade da vigência do «designado Regime do Inquilinato do Ultramar (que regulava o arrendamento de prédios urbanos, sem prejuízo das disposições do Código Civil, quer gerais, quer próprias de contratos de locação, que o não contrariassem), constante do Decreto-Lei no 43525, de 8 de Abril de 1961, publicado no B.O.M. n.º 14».

14. Poder-se-ia cogitar que todas estas vicissitudes, ainda assim, talvez não justificassem suficientemente, de per si, a elaboração de um novo código civil para Macau, com todo o esforço e melindre que tamanha empresa acarreta, mas outros factores de grande peso impunham essa opção. Desde logo, o imperativo político da localização, antes de 20 de Dezembro de 1999, da legislação portuguesa ainda aqui vigente. Mas também a não menos importante necessidade de garantir o carácter actual e adaptado à realidade do Território de um diploma que — constituindo «a principal lei ordinária do ordenamento jurídico»; «um verdadeiro direito geral ou comum» que «consagra diversas soluções que se aplicam a todos os ramos do direito» — se pretende vigore durante os próximos cinquenta anos, sem esquecer que irá cobrir ainda a derradeira fase da Administração portuguesa.

15. Por outro lado, diversos e relevantes factores recomendavam que a intervenção do legislador nesta tarefa consistisse essencialmente numa reforma do código vigente, ao invés da elaboração de um documento ex novo:

— o escasso tempo disponível até à transferência do exercício da soberania, ainda mais se considerada a dimensão daquele (perto de 2300 artigos);

— a excelência de muitas das soluções do actual diploma, pouco ou nada beliscadas pelos seus mais de trinta anos de idade, apesar de estes aconselharem algumas intervenções;

— o objectivo — ao encontro, aliás, da Declaração Conjunta — de manutenção dos enraizados valores do sistema jurídico vigente, de matriz portuguesa;

— finalmente, porque, como afirmou o coordenador do projecto, «as mudanças profundas implicariam a perda do caudal de experiências de aplicação do Código, que se mostram decisivas para a preservação da identidade não adulterada do sistema jurídico que se quer que vigore no hoje, bem como no amanhã do Território». Com efeito, «a mudança de parte substancial dos operadores do direito de Macau aconselha vivamente que o Território disponha de um depósito de memórias apto a construir internamente o sistema e a apetrechá-lo de jurisprudência e doutrina capazes de o aprofundar e de o limar no confronto com a realidade, de lhe servir de farol na decisiva e delicada tarefa da aplicação da lei aos casos da vida».

16. O trabalho a desenvolver foi, assim, dividido em três fases:

— localização em sentido estrito; i.e., adaptação do articulado vigente ao contexto político-jurídico actual e futuro, dotando-o da adaptabilidade suficiente para que possa passar incólume a data da transferência do exercício da soberania, «tornando-o capaz de operar adequadamente, quer no contexto da Administração portuguesa, quer no contexto da Administração chinesa». Aqui, foram considerados dois níveis de intervenção: a um nível, a depuração «de todas as referências directas e indirectas à realidade portuguesa» do texto do Código actual, «através da substituição das mesmas por outras adaptadas ao contexto de Macau»; a outro nível, a alteração da perspectiva original do Código Civil, que «havia sido pensado para ser aplicado a todo um espaço nacional, para o de um Código de âmbito eminentemente regional, ou seja de um direito de uma região inserida num espaço nacional mais vasto dotado de um direito civil distinto»;

— recodificação; quer dizer, «recolocação no Código de parte da legislação civil avulsa entretanto criada que, tendo interferido com as matérias contidas no mesmo, determinaram não raramente uma multiplicação e, como tal, uma dispersão das fontes legislativas por diversos diplomas autónomos». Além do caso já citado do regime da propriedade horizontal, poderão citar-se, a título exemplificativo, a Lei n.º 20/88/M, de 15 de Agosto, sobre o contrato-promessa; o Decreto-Lei n.º 82/90/M, de 31 de Dezembro, sobre a simplificação de actos jurídicos; a Lei n.º 4/92/M, de 6 de Julho, sobre a taxa de juro legal, a usura, o anatocismo e o mútuo; e a Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto, que aprovou o regime do arrendamento urbano (revogando, entre outros, o Regime do Inquilinato do Ultramar, atrás referido);

— finalmente, adequação de fundo, «ainda que pontual, das soluções materiais (…) actualmente em vigor, de modo a que se procedesse ao rejuvenescimento e ajustamento de algumas soluções que pareçam hoje estar já, de algum modo, desajustadas» — as chamadas modernização e adequação.

17. Antes da apreciação, propriamente dita, do articulado do projecto, de referir, ainda, que o decreto preambular determina a entrada em vigor do novo Código a 15 de Setembro próximo (artigo 2.º, n.º 1), de modo a coincidir com a abertura do ano judicial, o que se afigura sensato; não se aplicando, porém, às acções que, à data, estejam pendentes nos tribunais (com algumas excepções: o disposto nos artigos 7.º, 11.º, 13.º e 34.º a 36.º do próprio decreto preambular, ex vi do artigo 2.º, n.º 2).

18. Ressalva-se também que só será possível o acesso a ficheiros e registos informáticos de terceiros e respectiva interconexão — mediante autorização, claro — quando estiver designada a «autoridade pública encarregada de fiscalizar a recolha, armazenamento e utilização dos dados pessoais informatizados», conforme previsto no novo artigo 79.º, n.º 3 (artigo 2.º, n.º 3, do decreto preambular).

III — APRECIAÇÃO GENÉRICA DO PROJECTO

19. Coerentemente com o espírito que presidiu à constituição desta comissão eventual e norteou o seu desempenho neste processo legislativo — a adequação política e social das soluções a encontrar, aproveitando o efectivo conhecimento da realidade local pelos seus membros —, a apreciação do articulado do projecto do novo Código Civil de Macau que aqui ora se pretende levar a cabo é meramente genérica; até porque a discussão das opções concretas foi já prosseguida ao longo das diversas reuniões que a Comissão teve com os representantes do Executivo. Acresce que a «breve nota justificativa» que acompanha o projecto — já mencionada em momentos anteriores deste parecer — é bastante completa e elucidativa quanto ao que de novo dele resulta.

Livro I — Parte Geral

20. São eliminados os assentos como fontes de direito, à semelhança da evolução já operada em Portugal no final de 1995 (ex vi do Decreto-Lei n.º 329-A/ /95, de 12 de Dezembro). Procura-se, assim, «criar meios para que no futuro haja a possibilidade de se proceder à revisão dos próprios acórdãos de uniformização de jurisprudência», em articulação com a reforma também em curso do processo civil local.

21. As convenções internacionais em que Macau é parte são integradas no elenco das fontes imediatas do direito (artigo 1.º, n.º 3), tal como já hoje sucede ex vi da Constituição da República (artigo 8.º, n.º 2, desta). Neste tocante, o Executivo informou entretanto a Comissão de que, a solicitação da parte chinesa ao Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês, a expressão final do n.º 3 do artigo 1.º da versão do projecto que havia sido distribuída sob a forma de livro «(e sobre os acordos interregionais») foi suprimida.

22. Em sede de conflitos de leis, a lei pessoal passa a ser a da residência habitual do indivíduo, substituindo-se ao critério de base hoje utilizado, que é, como se sabe, a nacionalidade (artigo 30.º, n.º 1), que oferece sobejas dificuldades operativas num espaço geográfico com as características demográficas de Macau. Ao ponto de o coordenador do projecto afirmar que, «a manter-se a redacção que inicialmente constava do Código, a verdade é que este (…) se arriscaria a ser um código sem destinatário». Além do risco de, «não sendo Macau um Estado soberano, e não tendo os seus cidadãos nacionalidade autónoma, termos de aplicar aos membros da comunidade de Macau os direitos das respectivas nacionalidades e não o direito de Macau». Certo é, no entanto, que já desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 32/91/M, de 6 de Maio, determina o Código actual que «aos residentes habituais no Território aplicar-se-á a lei vigente em Macau» (artigo 31.º, n.º 2, do texto hoje em vigor). A residência habitual é entendida como «o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal» (artigo 30.º, n.º 2), e «não depende de qualquer formalidade administrativa», presumindo-se, no entanto, como «residente habitual no Território aquele que tenha direito à titularidade do bilhete de identidade de residente de Macau» (n.º 3).

23. É uniformizado e inovado o critério supletivo para determinação da lei reguladora das obrigações, passando a ser «a lei do lugar com o qual o negócio jurídico se ache mais estreitamente conexo» (artigo 41.º).

24. Os direitos de autor, os direitos conexos e a propriedade industrial passam, sem prejuízo do disposto em legislação especial, a ser «regulados pela lei do lugar onde se reclama a sua protecção» (artigo 47.º).

25. Ainda em sede de normas de conflito, fixam-se regras para a determinação da lei reguladora da união de facto (artigo 58.º).

26. É desenvolvido o regime civil da tutela da personalidade. Nesse sentido, ficam expressamente cobertas «as lesões provocadas no feto» (artigo 63.º, n.º 3), sendo, contudo, necessária uma actuação dolosa para a responsabilização dos progenitores (n.º 4). Excluídas ficam, em qualquer caso, as «malformações causadas aos filhos e as doenças a eles transmitidas no momento da concepção» (ainda n.º 4).

27. Na mesma orientação, é introduzida uma cláusula genérica de universalismo e não discriminação em matéria de direitos de personalidade (artigo 67.º, n.º 1).

28. Aos sucessores do titular dos direitos de personalidade é atribuída legitimidade para continuarem a acção de defesa desses direitos já intentada por aquele (artigo 68.º, n.º 3 – até agora, apenas podiam intentá-la ab initio — cf. artigo 71.º, n.º 2, do actual Código), adoptando-se, assim, a solução já existente no artigo 73.º do texto vigente (e no artigo 82.º, n.º 3, do projecto) para as acções relativas à defesa do nome.

29. A limitação voluntária do exercício dos direitos de personalidade passa a ser nula se disser respeito a interesses indisponíveis ou se for contrária aos bons costumes (artigo 69.º, n.º 1), e não apenas quando for contrária aos princípios da ordem pública, como hoje se declara no texto vigente do Código (no seu artigo 81.º, n.º 1), só podendo doravante ser revogada até à execução do facto (artigo 69.º, n.º 5). Com estas ressalvas, será considerada eficaz a limitação voluntária feita por maior de 14 anos, desde que possuidor do necessário discernimento (artigo 69.º, n.º 2). Tratando-se de menor de 14 anos, mas possuidor desse esclarecimento, o consentimento do seu representante legal não é eficaz se prestado em oposição à vontade do menor (artigo 69.º, n.º 3).

30. Introduzem-se novos preceitos em sede de direitos da personalidade, consagrando-se, nomeadamente, o direito à vida (artigo 70.º), à integridade física e psíquica (71.º), à liberdade (72.º), à honra (73.º), à história pessoal (78.º), à protecção de dados pessoais (79.º) e à verdade pessoal (81.º).

31. O regime da ausência é reduzido das actuais três fases (curadoria provisória, curadoria definitiva e morte presumida) para duas: curadoria (artigos 89.º a 99.º) e morte presumida (100.º a 110.º).

32. No instituto da curadoria, alteração de monta é a previsão da nomeação de um curador pelo tribunal nos casos em que passados três anos sobre a data das últimas notícias, se continuar a desconhecer a existência e o paradeiro do ausente (artigo 89.º, n.º 2) e em que alguém se encontre temporariamente impossibilitado, por doença ou outras causas semelhantes, de actuar por si ou designar procurador (alínea b) do n.º 1). Nesta última situação, «a curadoria termina com o termo do estado causador da mesma» (98.º, n.º 2).

33. O prazo a observar para se poder requerer a declaração de morte presumida do ausente é reduzido de dez para sete anos sobre a data das últimas notícias (artigo 100.º, n.º 2). Deixa, também, de ser exigido que já tenham decorrido cinco anos sobre a data em que o ausente, se fosse vivo, atingiria a maioridade (previsto no artigo 114.º, n.º 2, do Código em vigor). Por outro lado, contempla--se a possibilidade de adopção do filho do ausente (artigo 102.º, n.os 2 e 3). Ademais, a exigibilidade das obrigações que se extinguiriam pela morte do ausente é agora considerada extinta (artigo 103.º, n.º 1), quando antes ficava suspensa (artigo 106.º do Código actual, embora em sede de curadoria definitiva).

34. Em matéria de incapacidades, nomeadamente da condição jurídica dos menores, operam-se pequenas alterações no regime da anulabilidade dos actos destes. Assim, a anulabilidade continua sanável mediante, entre outras vias, confirmação do progenitor que exerça o poder paternal, do tutor ou do administrador de bens, mas apenas tratando-se de acto que algum deles pudesse celebrar livremente como representante do menor. Isto porque nos casos em que o representante legal necessitasse de autorização do tribunal, o menor terá que solicitar ao órgão judicial a sua confirmação e este dá-la-á ou não atendendo aos interesses desse mesmo menor (artigo 114.º, n.º 2).

35. Ainda ao nível das incapacidades:

— é esclarecido, a propósito do dolo de menor, que não basta que este «se tenha arrogado o estado de maior ou emancipado» para se considerar justificada a crença da contraparte nesse estado; não sendo a crença justificada, o acto do menor é anulável (artigo 115.º, a contrario sensu);

— é eliminada a previsão do «dever de obediência» dos menores aos pais ou tutores, consagrada no actual artigo 128.º do Código; segundo esclareceu o Executivo, não só em face da sua deficiente inserção sistemática (visto não se tratar, em rigor, de matéria de incapacidades), mas principalmente para evitar uma duplicação de preceitos, dado esse dever estar também consignado, desde a reforma de 1977 e em sede bem mais apropriada (na regulação do conteúdo do poder paternal), no artigo 1878.º do Código, a que corresponde, de forma inalterada, o artigo 1733.º, n.º 2, do projecto;

— é clarificado que «os actos praticados pelo menor depois de atingir a maioridade, e antes do trânsito em julgado da sentença que ponha termo ao processo de interdição ou inabilitação», são anuláveis nos mesmos termos previstos em sede de interdições (artigos 119.º, n.º 2, e 132.º);

— as interdições são também aplicáveis aos emancipados e não apenas aos maiores de 18 anos (artigo 122.º, n.º 2);

— a tutela do interdito é deferida, em terceira linha, conjuntamente aos seus progenitores, e não, como até agora, «a qualquer dos progenitores do interdito que, de acordo com o interesse deste, o tribunal designar» (artigo 126.º, n.º 1, alínea c));

— no mesmo contexto, a tutela é deferida, já em quarta linha, «a qualquer dos filhos maiores do interdito que, de acordo com o interesse deste, o tribunal designar», em substituição do actual sistema de atribuição dessa função preferencialmente ao filho mais velho (alínea d));

— são alterados os requisitos para o levantamento da inabilitação fundada na prodigalidade ou no abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, com a substituição do decurso de um período de cinco anos sobre o trânsito em julgado da sentença que a decretou ou da decisão que haja desatendido um pedido anterior, pelo decorrer de «um período mínimo de prova, considerado adequado de acordo com as leges artis, de reabilitação do inabilitado» (artigo 138.º).

36. A regulamentação das pessoas colectivas foi desenvolvida e adaptada às alterações entretanto produzidas por via avulsa, mormente através do Decreto-Lei n.º 82/90/M, de 31 de Dezembro. O esforço de recodificação é também aqui patente. Deste modo, além de consagrado o direito de livre associação (artigo 155.º) e definidas associação (154.º) e fundação (173.º), surge uma panóplia de novos preceitos ou são densificados preceitos já existentes, desde a descrição das competências do órgão de administração e do conselho fiscal das associações e fundações (1450) até à responsabilização dos respectivos titulares para com as próprias pessoas colectivas (149.º, n.os 2 e 3) e para com terceiros (150.º), e à responsabilização dos mandatários e procuradores (151.º), passando pelo tratamento de aspectos como as actas das reuniões (146.º), as reuniões em simultâneo (148.º), a convocação da assembleia geral das associações por protocolo (161.º), os fundamentos de nulidade das deliberações dos associados e o prazo para a sua arguição (165.º) ou a delegação do exercício do direito de voto dos associados (168.º). Também há novas disposições em matéria estatutária (176.º, n.º 2, alínea a), in fine; 178.º, n.os 1, 2 e 4; e 179.º, n.os 1, ab initio, e 2).

37. O projecto revela ainda alterações no âmbito dos requisitos de forma para a constituição de associações e de fundações (artigos 157.º e 174.º; basicamente, em adaptação ao já disposto no Decreto-Lei n.º 82/90/M) e da respectiva extinção (171.º, n.º 4, 181.º e 182.º). Também são mexidos o regime da invalidade das deliberações da assembleia geral (166.º, em particular as alíneas c) e d) do n.º 1) e a noção de terceiros de má fé (167.º, n.º 2), e são invertidos os poderes do órgão de administração da fundação e da entidade competente para o reconhecimento desta, para suprimir, reduzir ou comutar encargos prejudiciais aos fins da mesma (180.º, n.º 1).

38. A Comissão considera tecnicamente menos correcta a duplicação de epígrafes nos artigos 181.º e 182.º: no primeiro, «causas e declaração da extinção»; no segundo, novamente «declaração da extinção». Dado o respectivo conteúdo, o artigo 181.º poderia ser epigrafado simplesmente de «causas da extinção».

39. No que toca às coisas, são, no essencial, densificados alguns conceitos, a começar precisamente pelo de coisa (artigo 193.º), com a tipificação dos bens do domínio público (n.os 3 e 4); mas também os de parte integrante (200.º, n.º 2); coisa futura (202.º) e universalidade de facto, que perde a designação simultânea de coisa composta (203.º). Surge, contudo, um novo conceito, o de partes componentes: «são aquelas que formam a coisa e sem as quais esta não existe ou é imperfeita» (200.º, n.º 1). Determina-se, ainda, que os negócios jurídicos que tenham por fim a aquisição de coisas consideradas imóveis apenas enquanto se encontrem ligadas a outras coisas imóveis «estão sujeitos às regras dos negócios sobre imóveis», se as partes as considerarem nessa qualidade (195.º, n.º 4).

40. Na esfera dos negócios e actos jurídicos, fizeram-se afinamentos em matéria de declaração, de vícios da vontade e da tutela de terceiros de boa fé contra a invocação de invalidades que afectem os negócios jurídicos.

41. Concretizando a primeira área, temos que:

— nos casos de declaração negocial feita por anúncio público, impõe-se a sua publicação em língua conhecida do destinatário (artigo 217.º);

— quando a proposta contratual não tem prazo de aceitação e é feita oralmente a pessoa presente, caduca se a aceitação não for imediata (220.º, n.º 1, alínea c));

— os contratos feitos através de meios de comunicação à distância são considerados feitos entre os presentes, se as partes ou os seus representantes comunicaram pessoalmente (n.º 3);

— a morte ou incapacidade do destinatário continua a determinar a ineficácia da proposta contratual que lhe haja sido feita, mas passa a aplicar-se aqui a ressalva que já existia para o caso de falecimento do proponente; i.e., excepcionam--se desse efeito automático os casos em que haja fundamento para presumir que outra teria sido a vontade deste (223.º, n.º 2);

— o desconhecimento, pelo proponente, da incapacidade do destinatário, quando do envio da proposta, também determina a ineficácia desta, mas só se houver fundamento objectivo para presumir que, face ao teor do negócio, essa teria sido a vontade do primeiro (n.º 3);

— No âmbito do acordo de vontades, é alargado o dispositivo legal, com a previsão de que se as partes tiverem «deixado pendente a negociação de determinados pontos secundários», mas tiverem revelado, por meio do começo de execução ou por qualquer outra forma, uma vontade inequívoca de se vincularem ao contrato nos termos negociados, este considera-se concluído, aplicando--se as regras de integração quanto aos pontos omissos (224.º, n.º 2).

42. No atinente aos vícios da vontade:

— em complemento à manutenção do requisito de observância da forma legalmente exigida para que o negócio dissimulado de natureza formal seja válido, vem agora considerar-se suficiente, para esse efeito, «a observância no negócio simulado da forma exigida para o dissimulado», contanto que as razões determinantes da forma do negócio dissimulado não se oponham a essa validade (artigo 233.º, n.º 3);

— ainda quanto ao mesmo vício, é introduzido um dispositivo concernente às relações entre credores, pelo qual «a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelos simuladores contra os credores do titular aparente que de boa fé hajam procedido a actos de execução ou similares sobre os bens que foram objecto do negócio simulado». Acrescenta-se ainda que «os credores do simulado alienante prevalecem na arguição da simulação sobre os credores comuns do simulado adquirente, contanto que o seu crédito seja anterior à simulação e estes últimos ainda não tenham procedido, de boa fé, a actos de execução ou similares» (236.º);

— é prevista a falta de vontade de acção, que — tal como a falta de consciência da declaração e a coacção física — determina a não produção de efeitos da declaração (239.º, n.º 1, alínea a));

— no caso da falta de consciência da declaração, esta somente não produz efeitos se o declarante agir sem culpa (238.º, n.º 1, alínea b)); considerando-se, pelo contrário, existir culpa «quando seja razoável supor que este, se tivesse usado da diligência exigível no comércio jurídico, se teria apercebido de estar a emitir uma declaração com valor negocial» (n.º 2);

— são definidos os pressupostos da essencialidade e da cognoscibilidade do erro na declaração negocial (240.º);

— o erro-vício (o que atinge os motivos determinantes da vontade) deixa de ser limitado à pessoa do declaratário e ao objecto do negócio, e é sanável se o declaratário aceitar o negócio jurídico como o declarante o queria (244.º e 241.º, ex vi daquele).

43. Para reforço da tutela dos terceiros de boa fé contra a invocação de invalidades que afectem os seus negócios jurídicos, é reduzido de três para um ano o prazo relevante para a propositura e registo da acção de nulidade ou anulação (artigo 284.º, n.º 2).

44. Entrando no instituto da representação voluntária, é sabido que a procuração conferida também no interesse do procurador ou de terceiro não pode ser revogada sem o acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa. Este regime mantém-se, mas é agora aditado um dispositivo pelo qual a apreciação desse interesse «é feita com base em critérios objectivos, mas a declaração desse facto na procuração cria uma presunção nesse sentido, embora ilidível mediante simples contraprova» (artigo 258.º, n.º 4).

45. A formulação do preceito relativo aos negócios usurários (artigo 275.º) é aproximada à do Código Penal de Macau.

46. O instituto da prescrição sofre importantes modificações, sendo a mais relevante a redução do seu prazo ordinário de vinte para quinze anos (artigo 302.º). Mas também se impõe que a prescrição do direito principal implica a do «direito a juros e outros direitos acessórios» (297.º, n.º 2) e que, no caso das prestações periódicas, uma vez prescrito o direito unitário do credor, se considera «também prescrita cada uma das prestações, ainda que o prazo de prescrição relativamente a alguma ou algumas das prestações individuais ainda não haja decorrido» (300.º, n.º 2).

47. O regime da suspensão da prescrição sofre também uma transformação de fundo, com a substituição da suspensão do curso pela suspensão do termo. Assim sucede com as causas bilaterais da suspensão (artigo 311.º do projecto) e com a suspensão a favor de menores, interditos ou inabilitados (312.º) e por motivo de força maior ou dolo do obrigado (313.º).

48. Finalmente, em sede de repercussão do tempo nas relações jurídicas, duas notas: é eliminado o regime específico da suspensão da prescrição a favor de militares e pessoas adstritas às forças militares, previsto no artigo 319.º do Código vigente, e são fixados os efeitos da notificação judicial avulsa sobre a interrupção da prescrição (315.º, n.os 5 e 6).

49. Já a respeito do exercício e tutela dos direitos, de relevar a aproximação do recorte da figura do estado de necessidade (artigo 331.º) à fórmula do Código Penal do Território.

50. Para encerrar a apreciação do Livro 1 do projecto, uma referência à matéria das provas: em caso de existência de fundadas dúvidas sobre a autenticidade de documentos passados fora do território de Macau, ou sobre a autenticidade do seu reconhecimento, a anterior previsão da possibilidade de ser exigida a sua legalização é agora substituída pela livre apreciação, pelo tribunal, da força probatória do documento (artigo 358.º, n.º 2). Uma alteração, porventura, essencialmente de semântica. Acrescente-se apenas que todo o preceituado relativo aos documentos autênticos foi adaptado à figura do notariado privado (globalmente, artigos 363.º a 381.º) .

Livro II — Direito das Obrigações

51. O coordenador do projecto assume ter sido este o Livro menos mexido, «fruto da natureza mais técnica e estável dos institutos que aborda». E, na realidade, as grandes alterações ocorreram essencialmente ao nível de dois regimes: do contrato-promessa e do arrendamento; este a regressar ao Código, com a consequente revogação da respectiva legislação avulsa.

52. No que ao contrato-promessa toca, realce para as inovações quanto aos efeitos do sinal e ao funcionamento da figura da execução específica. A Comissão reconhece a existência de alguma fricção entre o regime do Código vigente e o saído da Lei n.º 20/88/M, de 15 de Agosto. Aliás, já em 25 de Setembro de 1997, a assessoria jurídica da AL elaborou um «memorando preliminar» para a Comissão de Administração e Segurança (CAS) onde, entre outras questões, abordava nomeadamente a problemática dos contratos-promessa de aquisição de fracções autónomas de edifícios não construidos, em construção ou não constituídos em regime de propriedade horizontal. Nesta sede, afirmava aquele documento, a dado passo, serem «merecedoras de especial atenção as alterações introduzidas no Código Civil vigente na República pelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, não tornado extensivo a Macau, e especificamente dirigidas a sanar manifestas deficiências sentidas ao nível do instituto do contrato-promessa de transmissão de direitos reais incidentes sobre edifícios e suas fracções autónomas, na formulação originária de 1966, a qual permanece intacta no ordenamento do Território».

53. Recuando ainda mais no tempo, em parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias de 18 de Julho de 1995, arguia--se, desde logo, ser «indispensável alterar o regime do contrato-promessa vigente em Macau, já que, na formulação actual, conduz a situações injustas e desequilibradas» e que «os problemas que têm vindo a ser suscitados encontram, de um modo geral, solução na redacção que o Decreto-Lei n.º 379/86» deu, entre outros, aos artigos 410.º, 442.º, 755.º e 830.º do Código Civil.

54. Ora, os novos artigos 404.º, 436.º e 745.º, que correspondem àqueles três primeiros, vêm precisamente ao encontro do texto hoje em aplicação em Portugal (com uma diferença no n.º 4 do artigo 436.º, ao equacionar o «direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior»). Diferentemente, o novel artigo 820.º (antigo 830.º), apesar de, em alguns pontos, caminhar naquela direcção, é também inovador, mesmo face ao direito da República, em particular (mas não apenas) ao permitir a execução específica do contrato-promessa independentemente da consignação de sinal ou da fixação de pena para o caso do seu incumprimento.

55. Mais, apesar de continuar a ser tolerada a celebração de convenção em contrário, esta também não afasta o exercício do direito à execução específica pelo promitente-adquirente, «relativamente a promessa de transmissão ou constituição onerosas de direito real sobre prédio ou fracção autónoma dele (…), contanto que tenha havido a seu favor tradição da coisa objecto do contrato» (n.º 2 do preceito). Neste ponto, houve uma forte aproximação ao regime português (cf. n.os 3 dos artigos 410.º e 830.º do respectivo Código Civil), com excepção do requisito final, já que na República não se exige a tradição da coisa para que o direito possa ser exercido.

56. A outra grande alteração ao nível do Livro II prende-se — já o dissemos — com a inclusão do regime do arrendamento urbano no Código, aliás propugnada por diversos Deputados, e a consequente revogação do diploma avulso que aprovara a actual regulamentação: a Lei n.º 12/95/M, de 14 de Agosto. Como salienta, no entanto, a «breve nota justificativa» do projecto, «a importação envolveu algumas adaptações de regime que passaram sobretudo pelo regresso ao entendimento do arrendamento como um contrato a prazo não sujeito a renovação obrigatória contra a vontade do senhorio». Neste contexto, tornava-se indispensável a definição de uma solução de direito transitório que salvaguardasse os contratos celebrados no passado ao abrigo de um regime que suscitou naturais expectativas de estabilidade aos arrendatários. Esse é o intuito do artigo 16.º do projecto de decreto preambular, de onde se destaca, no caso dos arrendamentos de pretérito não sujeitos ao regime de duração limitada — naturalmente, os mais sensíveis a inovações —, a impossibilidade de o senhorio «os denunciar para o seu termo ou renovações pelo prazo de 7 anos após a entrada em vigor do novo Código», com algumas excepções (alínea a) do n.º 3).

57. Ao encontro da mesma necessidade de segurança jurídica vai a decisão de transpor de forma quase inalterada para o Código o elenco dos casos de resolução do contrato pelo senhorio (artigos 67.º do RAU e 1034.º do projecto); e ainda a manutenção, também com uma redacção muito próxima da actualmente em vigor, dos prazos para restituição do prédio em certos casos de caducidade (artigos 74.º do RAU e 1036.º do projecto) e para a comunicação escrita ao outro contraente da denúncia (artigos 77.º do RAU e 1039.º do projecto. Aqui, houve mesmo um alargamento do prazo de 60 para 90 dias em relação aos contratos de duração igual ou superior a um ano e inferior a seis anos, ou renovados por esse período).

58. Merecedora de destaque é também a reformulação da matéria dos privilégios creditórios. O Código actual distingue-os em privilégios mobiliários — gerais e especiais — e privilégios imobiliários (artigo 735.º); o projecto mantém os privilégios mobiliários gerais, altera a designação dos privilégios mobiliários especiais para apenas privilégios especiais e aparenta suprimir os privilégios imobiliários (artigo 730.º) — na realidade, estes são rearrumados no campo dos privilégios especiais (cf. artigos 743.º e 744.º do Código Civil e 733.º e 736.º do projecto).

59. Suprimidos são mesmo alguns dos actuais privilégios mobiliários especiais, como os que impendem sobre os frutos de prédios rústicos (artigo 739.º do Código vigente) e sobre as rendas dos prédios urbanos (740.º). A intenção terá sido de proteger «as legítimas expectativas de terceiros» adquirentes dos bens, afectados por «onerações ocultas», dado estes privilégios serem «independentes do registo ou de outros elementos de recognoscibilidade externa».

60. Foram feitos acertos diversos em matéria de obrigações de juros. Concretamente, a qualificação da usura deixou de basear-se em valores percentuais fixos (cf. a redacção original do artigo 1146.º do Código Civil e o artigo 4.º da Lei n.º 4/92/M, de 6 de Julho, este a qualificar de usurárias a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens que excedam 50% ao ano), passando a ser aferida por referência à taxa de juros legal: são agora havidos como usurários os juros superiores ao triplo dos juros legais (1073.º, n.º 1), sendo também considerada usurária «a cláusula penal compensatória que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo, relativamente ao tempo de mora, mais do que o correspondente ao quádruplo dos juros legais» (n.º 2). «Tratando-se de cláusula penal compulsória, o montante da sanção não poderá ser superior ao triplo dos juros legais» (idem, in fine).

61. No âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos desaparece a previsão concreta das ofensas do crédito ou do bom nome (artigo 484.º do Código Civil).

62. Para efeitos de impugnação pauliana, é criada uma presunção de má fé na compra e venda entre cônjuges, quando esta envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito de terceiro e tenha sido celebrada posteriormente à constituição do crédito (artigo 608.º).

63. Em sede de cumprimento e incumprimento das obrigações, verificam-se algumas alterações ao regime vigente. Apontam-se, a título exemplificativo, as soluções dos novos artigos 759.º (que especifica a quem deve ser feita a prestação. Cf. artigos 769.º e 771.º do Código Civil — sendo que este último preceito é eliminado), 805.º (resolução do devedor por mora do credor) e 821.º (aplicação do regime da execução específica do contrato-promessa a situações em que haja obrigação legal de contratar).

64. Merecedor aqui de relevo é, contudo, o desenvolvimento do regime da cláusula penal, como também salienta a «breve nota justificativa», com a introdução da cláusula penal compulsória, cumulável com a indemnização (cf., em especial, os artigos 799.º e 800.º do projecto e 810.º e 811.º do Código vigente).

65. Já ao nível dos contratos em especial, para lá do que já foi adiantado a respeito do arrendamento, são eliminadas todas as disposições sobre os contratos de sociedade (actuais artigos 980.º a 1021.º do Código Civil) — segundo o Executivo, para se evitar uma duplicação de regimes, dada a similitude daquele com o regime das sociedades em nome colectivo — e de parceria pecuária (actuais artigos 1121.º a 1128.º).

66. No contrato de compra e venda, são eliminadas as restrições às vendas a filhos e netos (actual artigo 877.º), há uma nova previsão sobre venda de bens alheios efectuada por comerciante (artigo 885.º do projecto), são suprimidas as restrições ao conteúdo da cláusula penal nos casos de venda a prestações (actual artigo 935.º) e é densificada a regulamentação da venda sobre documentos (novos artigos 930.º e 931.º).

67. No contrato de doação, é prevista a convalidação de doações de bens alheios (artigo 951.º do projecto), bem como a convalescença do contrato (952.º), e é eliminado o actual disposto sobre os efeitos da reversão de doações (artigo 961.º do Código).

68. Finalmente, os actuais preceitos sobre o jogo e a aposta (artigos 1245.º a 1247.º) são aglutinados num único (artigo 1171.º do projecto), com uma redacção que inculca uma diametral mudança de posicionamento do legislador a respeito desta actividade. Feito o devido confronto dos articulados, verifica-se que a reforma é aparentemente subtil; em substância, a lei continua essencialmente idêntica. Assim sendo — e sem negligenciar o mérito da melhoria de sistematização e consequente economia do articulado —, a Comissão questiona-se sobre a utilidade ou as vantagens da modificação operada. Porventura, a real dimensão da intervenção do legislador ficaria mais clara se a primeira parte no n.º 1 do projectado artigo 1171.º fosse alterada para «o jogo e a aposta apenas constituem fonte de obrigações civis quando lei especial o preceitue».

Livro III — Direito das Coisas

69. A reforma do Livro III, dedicado aos direitos reais, pode sintetizar-se, grosso modo, nos seguintes pontos:

— regresso da regulamentação da propriedade horizontal ao Código Civil (artigos 1313.º a 1372.º do projecto);

— eliminação do regime do fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos (actuais artigos 1376.º a 1384.º);

— supressão do direito real de enfiteuse (artigos 1491.º a 1523.º vigentes), na esteira do que já sucedera em Portugal, por efeito de diversa legislação publicada entre 1975 e 1980; e

— adaptação e actualização ou desenvolvimento dos regimes da ocupação, da acessão, das águas, da administração da compropriedade e dos direitos de usufruto, de superfície e de servidão.

70. Começando pelo instituto da propriedade horizontal, a leitura dos respectivos preceitos inculca a rápida noção de que a sua «recodificação» não se tratou de uma mera importação dos preceitos da Lei n.º 25/96/M, de 9 de Setembro (PH); antes, os autores do projecto aproveitaram o ensejo para desenvolver alguns aspectos do escopo legal desta figura.

71. Desde logo, a questão da propriedade horizontal de conjuntos de edifícios, já prevista na lei vigente (mormente no seu artigo 6.º), mas agora alvo de um tratamento mais alargado (cf., sem preocupações de exaustão, os artigos 1314.º; 1316.º, n.º 2; 1319.º; 1320.º; 1321.º; 1324.º, n.os 3 e 4; 1328.º, n.os 2, 4, 6 e 7, alínea b); 1329.º, n.º 2; 1337.º, n.º 5; 1345.º, n.º 4; e 1361.º ss. do projecto).

72. Pensado para esta realidade (mas não só — cf. o n.º 3 do artigo 1328.º do projecto), surge o regime da administração complexa de condomínios, já aflorado na PH (artigo 22.º), mas em moldes diversos. Com efeito, aqui prevê-se que cada bloco ou corpo distinto tenha um administrador próprio (n.º 2) e que as partes comuns ao conjunto dos edifícios sejam «administradas pelo colégio de administradores dos vários blocos ou corpos distintos» (n.º 3). Já segundo o projecto, além de se admitir a eleição de uma administração autónoma para o conjunto do condomínio, em vez do colégio de administradores (artigo 1329.º, n.º 2, alínea b)), estruturam-se também dois níveis de assembleias de condóminos: uma em cada subcondomínio (alínea a)) e outra para o condomínio na sua totalidade.

73. Alvo de densificação são também os direitos dos condóminos (artigo 1330.º), até agora apenas abordados na vertente dos direitos sobre o prédio (artigos 9.º da PH e 1323.º do projecto), e, bem assim, os respectivos deveres (1331.º). Pormenorizados são também o regime das invalidades das deliberações da assembleia de condóminos (artigos 1350.º a 1353.º. Cf. artigo 28.º da PH) e a problemática da transferência de direitos e encargos dos condóminos quanto à administração corrente (artigo 1343.º).

74. Por outro lado, inovador é o «direito de inspecção» agora atribuído aos administradores (artigo 1358.º), que tem como conteúdo o livre acesso a todas as partes do condomínio — com excepção das fracções autónomas, cuja entrada tem que ser autorizada pelos respectivos condóminos (n.º 1) —, para verificação, v.g., da necessidade de realização de obras de interesse comum (alínea a) do n.º 3). Saliente-se que a formulação deste preceito segue de perto a já constante dos projectos de lei n.º 3/VI/96 (intitulado «Lei complementar ao regime de administração de edifícios em propriedade horizontal») e 6/VI/96 («Regime de administração de edifícios em regime de propriedade horizontal»). Aliás, o «memorando preliminar», atrás citado , que a assessoria da AL elaborou para a CAS em 25 de Setembro de 1997, já apontava esta como uma das escassas matérias daqueles projectos que pareciam «reunir alguma substancialidade inovatória face» à PH. E se é certo que, tal como ali se afirmava, face ao disposto no artigo 34.º, proémio e n.º 1, alíneas f) e h), da PH e aos regulamentos de condomínio, «não existe qualquer óbice legal para a consagração da aludida faculdade inspectiva do administrador em virtude de deliberação da assembleia dos condóminos ou por força de previsão regulamentar», a sua positivização também não suscita dificuldades.

75. De referir ainda que a PH contém diversas disposições sobre registo (todo o capítulo V — artigos 37.º a 41.º) que, obviamente, não foram transpostas para o projecto, pelo que a sua vigência terá quer ser salvaguardada, porventura até integrarem o futuro Código de Registo Predial de Macau. Ora, o que resulta do projecto é exactamente o oposto: o respectivo decreto preambular revoga na íntegra, tout court, a Lei n.º 25/96/M, como já foi adiantado.

76. Ao nível das adaptações de regimes, e começando pela ocupação, é eliminado o preceito relativo a enxames de abelhas (artigo 1322.º do Código Civil); é estipulado que o achador de coisa móvel perdida de valor manifestamente superior a 2000 patacas deverá sempre avisar as autoridades policiais (artigo 1247.º, n.º 2, do projecto); são actualizados os montantes dos prémios do achador (n.º 4) e é introduzida uma previsão legal sobre a descoberta de tesouros pelo usufrutuário na coisa usufruída (n.º 4 do artigo 1248.º).

77. No âmbito da acessão, suprimem-se disposições desadaptadas da realidade física de Macau, como as relativas ao aluvião (artigo 1328.º do Código vigente), à avulsão (1329.º), à mudança de leito (1330.º), à formação de ilhas e mouchões (1331.º) e a lagos e lagoas (1332.º); estende-se, mutatis mutandis, à acessão natural resultante de acção violenta da natureza o preceituado para a ocupação de animais e coisas móveis perdidas (artigo 1247.º, ex vi do artigo 1251.º, n.º 2, ambos do projecto); na especificação de boa fé, quando o valor da especificação não excede o da matéria, o dono desta pode agora optar entre ficar com a coisa ou exigir uma indemnização (artigo 1255.º, n.º 1, in fine, do projecto); podendo quem, de boa fé, construir obra em terreno alheio, e caso o valor que a obra tiver trazido à totalidade do prédio seja maior que o valor que este tinha antes, também escolher entre adquirir a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, ou não o fazer, ficando, neste caso, o dono do terreno com tudo, contra o pagamento de uma indemnização de montante a apurar segundo as regras do enriquecimento sem causa (1259.º). São, de igual modo, previstas diversas situações de acessão pelo titular de um direito de superfície (cf. artigos 1258.º, n.º 2; 1259.º, n.º 4, e 1263.º, n.os 3 e 4).

78. O regime da propriedade das águas foi também objecto de adaptação às características físicas de Macau, com a supressão sem substituição de diversos preceitos do Código actual. É o caso das alíneas d) a f) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 1386.º; da primeira parte da alínea a) e da alínea b) do n.º 1, e dos n.os 3 e 4 do artigo 1387.º; do n.º 3 do artigo 1390.º e ainda dos artigos 1392.º, 1397.º e 1400.º a 1402.º Por outro lado, incluem-se agora entre as águas particulares «as correntes não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares» e «outras como tal consideradas pela lei» (alíneas d) e e) do artigo 1289.º do projecto).

79. As alterações ao instituto da compropriedade cingiram-se, como, aliás, se refere na «breve nota justificativa», à densificação do regime jurídico da sua administração, matéria até à data circunscrita a um escasso preceito que, além do mais, remete para as disposições da administração da sociedade, as quais, como se recorda atrás, irão desaparecer (artigo 1407.º do Código Civil). O projecto dedica os seus artigos 1303.º a 1306.º a esta matéria, prevendo, nomea-damente, a possibilidade de adopção de um regulamento de administração.

80. O direito de usufruto foi igualmente objecto de intervenção. Logo à partida, ditada pelo mesmo móbil de adaptação do instituto às características do Território, com a descontinuidade dos preceitos relacionados com o perecimento natural e acidental de árvores e arbustos (artigos 1453.º e 1454.º do Código), o usufruto de matas e árvores de corte (1455.º) e de plantas de viveiro (1456.º), a exploração de minas (1457.º) e de águas (1459.º), tesouros (1461.º), prémios e outras utilidades aleatórias (1466.º).

81. Revolucionada é a previsão da duração do usufruto, confinado até hoje à vida do usufrutuário ou a um limite máximo de trinta anos, no caso de constituição a favor de pessoas colectivas (artigo 1443.º do Código Civil). Nos termos do projecto, torna-se possível a transmissão do usufruto por morte do usufrutuário, desde que tal tenha sido expressamente declarado no título constitutivo e tenha sido fixado um prazo para a duração do usufruto (artigo 1377.º).

82. É supletivamente presumida a gratuitidade do usufruto; admitindo-se, doutro modo, a convenção, a título de preço, do pagamento de uma prestação ou de prestações anuais (artigos 1378.º e 1379.º). De notar ainda que o enqua-dramento do usufruto de títulos de crédito e de participações sociais é remetido para legislação especial (artigo 1394.º Cf. artigo 1467.º do Código vigente); o prazo para a extinção do usufruto pelo não uso é reduzido de vinte para quinze anos (artigo 1402.º, n.º 1, alínea d)); a usucapio libertatis (a posse da coisa como se não existissem limitações) é agora expressamente incluída entre as causas de extinção do usufruto (artigos 1402.º, n.º 1, alínea e), e 1405.º) — à semelhança, aliás, do que já sucede com as servidões prediais (cf. artigos 1569.º, n.º 1, alínea c), e 1574.º do Código) — e em caso de mau uso da coisa pelo usufrutário, com prejuízo considerável para o proprietário, pode este agora requerer em tribunal a extinção do usufruto (artigo 1403.º, n.º 1, alínea a)).

83. Passando ao direito de superfície, este é restringido às obras (excluem-se as plantações — artigo 1417.º do projecto, por contraposição ao actual artigo 1524.º do Código); sendo suprimidos a referência à sua constituição pelo Estado ou por pessoas colectivas públicas (artigo 1527.º do Código) e o direito de preferência do proprietário do solo na sua venda ou dação em cumprimento (1535.º), aqui em acolhimento das críticas da doutrina à existência dessa preferência legal (além de que as partes podem sempre clausular a preferência quando constituem o direito de superfície).

84. Alteração de monta é ainda a que concerne ao objecto deste direito, que pode agora ser também a construção ou manutenção de obra no subsolo, e não apenas no solo, como vinha sucedendo (artigo 1418.º, n.º 2, do projecto). São igualmente regulados a admissibilidade e os termos em que o direito de superfície de terrenos privados pode ser atribuído para a construção de prédios em regime de propriedade horizontal («breve nota justificativa», passim, e novo artigo 1419.º). Finalmente, o regime de pagamento das prestações anuais do superficiário é modificado (necessariamente, acrescente-se, dado no Código actual — artigo 1531.º, n.º 1 — esse regime remeter para disposições da enfiteuse, que vai ser extinta, como já foi referido), reportando-se, em boa medida, ao regime aplicável ao usufruto (artigo 1424.º, n.º 1, do projecto).

85. Em sede de regime das servidões prediais são, uma vez mais, expurgados alguns preceitos desfasados das especificidades de Macau. É o caso dos relativos a servidões de passagem para o aproveitamento de águas (artigo 1556.º do Código), ao aproveitamento de águas para gastos domésticos (1557.º, com o consequente desaparecimento do disposto no n.º 4 do artigo 1569.º) e para fins agrícolas (1558.º, idem), às servidões legais de presa e de aqueduto para o aproveitamento de águas públicas (1560.º e 1562.º) e a alguns casos de constituição coerciva da servidão de escoamento (alínea d) e parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 1563.º). Por outro lado, deixa de estar prevista a constituição de servidões legais por via administrativa (1547.º, n.º 2), dado o Executivo considerar não dever esta matéria ser tratada no Código Civil; bem como a reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa, como causa de extinção de servidões (1569.º, n.º 1, alínea a)) — i.e., passa a admitir-se a constituição de servidões sobre coisa própria, como avança a «breve nota justificativa». No mesmo sentido aponta, de forma inequívoca, a nova redacção do preceito dedicado à noção de servidão predial: onde antes se definia esta como «o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente» (artigo 1543.º do Código. Itálico nosso), agora consta «ainda que pertencente ao mesmo dono» (artigo 1434.º do projecto). Acresce que, face à eliminação da enfiteuse, deixa também de ser feita menção a servidões constituídas pelo enfiteuta (artigos 1575.º do Código e 1460.º do projecto).

86. Destacam-se outras duas alterações: passa a ser permitida a constituição de servidões não aparentes por usucapião nos casos em que a posse seja titulada, fundando-se em título provindo do proprietário do prédio serviente (artigo 1439.º, n.º 1) e o prazo para a extinção das servidões pelo não uso é reduzido de vinte para quinze anos (artigos 1569.º, n.º 1, alínea b), do Código e 1455.º, n.º 1, alínea a), do projecto).

Livro IV — Direito da Família

87. Este Livro é porventura o que apresenta mais afinidades com o quoti-diano da população. Dado ter sido, simultaneamente, o mais modificado — conforme o coordenador do projecto assumiu junto da Comissão Eventual —, houve um grande cuidado, nas suas palavras, em ponderar e conciliar, por um lado, os interesses de tutela da família e dos valores de solidariedade que esta impõe, incluindo a protecção de determinados familiares após a morte, e, por outro, as exigências da dinâmica económica moderna, que clama por uma maior liberdade de disposição dos bens. Acresce, aliás, que os próprios laços da família têm vindo a liberalizar-se. Nesta dualidade de ideias, há duas ordens de questões interligadas: o regime de bens do casamento e o regime sucessório (ou seja, a tutela do cônjuge e dos filhos, face ao falecimento do progenitor).

88. No Código Civil actual vigora um regime supletivo — da comunhão de adquiridos — que tem por escopo precisamente a salvaguarda dessa solidariedade inerente ao casamento. Por isso, com excepção dos bens obtidos a título gratuito, todo o restante património adquirido pelos cônjuges na constância do casamento é considerado comum do casal. Concomitantemente, quando uma das partes queira dispor de bens imóveis comuns ou mesmo próprios, necessita do consentimento do outro cônjuge, sob pena de anulabilidade do acto (cf. artigos 1682.º-A e 1687.º do Código Civil). Na prática, em Macau, este sistema tem sido propulsor da utilização de meios fraudulentos de desvio à lei (v.g., falsas declarações quanto ao estado civil dos interessados) ou do recurso à figura do suprimento judicial (1684.º, n.º 3), com todos os inconvenientes e encargos daí resultantes.

89. Para obstar a esta dificuldade, o Executivo decidiu adoptar um novo regime supletivo de bens do casal, importando uma modalidade já existente em alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros (v.g., nas legislações escandinavas e no Código Civil francês — artigos 1569.º ss.), conhecida por «participação nos adquiridos» (artigo 1579.º do projecto): segundo esta, os bens próprios adquiridos por cada cônjuge continuam sempre próprios, independentemente de o terem sido antes ou depois da celebração do casamento. Não há, assim, um património comum do casal, excepto se tiver sido obtido por ambos. Mais, durante o casamento, cada cônjuge dispõe livremente dos seus bens, sem necessitar do consentimento do outro, ao contrário do que actualmente sucede, como já foi adiantado. Só quando da partilha dos bens é que se manifesta a comunhão de adquiridos. Com efeito, no momento da dissolução do casamento é feita a verificação do valor dos bens e é fixada uma compensação pecuniária para o cônjuge que não criou riqueza na pendência do matrimónio (cf. artigo 1582.º do projecto). Desta forma, e segundo o Executivo, mantém-se o apoio ao cônjuge mais desfavorecido, mas é conseguida, simultaneamente, uma maior flexibilidade na disposição dos bens.

90. Outra questão que mereceu a atenção do Executivo foi a presente dificuldade de mudança do regime de bens do casamento, quer à priori (ou seja, a escolha de um regime diferente do supletivo) quer à posteriori (na pendência do matrimónio, o que não está sequer previsto na lei vigente — a válvula de escape do actual artigo 1719.º, n.º 1, respeita à partilha dos bens e não a um regime alternativo), tanto mais que, nos moldes correntes, a convenção antenupcial tem que ser celebrada por escritura pública perante um notário (artigo 1710.º do Código Civil). Diferentemente, o novo articulado prevê a sua realização na conservatória do registo civil onde é celebrado o casamento, sendo lavrada no próprio auto de casamento, embora aqui caiba ao futuro Código do Registo Civil de Macau a regulamentação dos detalhes (cf. artigo 1574.º do projecto. No entanto, como se verifica pela leitura do preceito, a celebração da convenção antenupcial em outro momento que não o do próprio casamento continua a obrigar à formalidade da escritura pública perante um notário, ainda que tal possa ser futuramente atenuado pela extensão desta competência aos notários privados, no âmbito da reforma do Código do Notariado).

91. Passa a ser também permitida a posterior mudança do regime de bens, por acordo mútuo (artigo 1578.º do projecto), mesmo para os casamentos celebrados antes da entrada em vigor do futuro Código (os casamentos celebrados sob o actual regime supletivo da comunhão de adquiridos mantêm-se, claro, sob este regime se os respectivos cônjuges não celebrarem qualquer convenção pós--nupcial em sentido diverso). Este novo sistema contém algumas cláusulas destinadas a evitar a sua utilização fraudulenta, mormente no sentido de tornar determinado património comum e, por essa via, subtraí-lo ao pagamento das dívidas de um dos cônjuges: a mudança não opera retroactivamente e não é oponível aos titulares de direitos constituídos anteriormente ao registo da convenção (artigos 1578.º, n.os 2 e 3, e 1575.º, n.º 1, ex vi daquele).

92. Foram ainda adoptadas outras medidas com o assumido propósito de facilitar a administração dos bens do casal:

— nos casamentos já celebrados sob o actual regime supletivo, deixa de ser necessário o consentimento do outro cônjuge para a disposição de bens imóveis próprios, ficando circunscrita aos bens comuns (cf. artigos 1682.º-A do Código e 1548.º do projecto);

— Ao nível da administração dos bens, vem-se agora permitir que um cônjuge emita ao outro uma procuração genérica para a prática de actos de administração dos bens do primeiro, suprimindo-se a actual exigência de consentimento para cada acto, com excepção dos relativos à casa de morada de família, aos bens móveis utilizados como instrumentos de trabalho e ao repúdio da herança ou legado. Outra cláusula de salvaguarda é a possibilidade de revogação da procuração a todo o tempo, independentemente de ter sido passada ou não também no interesse do outro cônjuge (cf. artigos 1684.º do Código e 1551.º e 1552.º do projecto).

93. Em suma, o Executivo procurou, nas palavras do coordenador do projecto, fazer o Código evoluir para «uma nova compreensão do casamento como um sistema entre pessoas iguais». Para isso, e sumariando as opções tomadas:

— é facilitada a escolha do regime de bens na convenção antenupcial, permitindo a sua celebração na conservatória do registo civil;

— é adoptado um novo regime supletivo de bens do casal;

— é permitida aos cônjuges a alteração, por comum acordo, do regime de bens do casal durante o matrimónio;

— nos casamentos sob o regime da comunhão de adquiridos, inclusive os já celebrados anteriormente à entrada em vigor do futuro Código, os cônjuges passam a dispor livremente dos seus imóveis próprios, sem necessidade de consentimento do outro cônjuge;

— finalmente, são possibilitadas as procurações genéricas entre os cônjuges, para que um possa administrar o património do outro.

94. Igualmente importante, foram concentradas as actuais duas modalidades de casamento — civil e católico — numa única: «o casamento civil tout court, regulado de acordo com a lei civil», embora esta medida imponha a criação de um regime de direito transitório que salvaguarde a modalidade do casamento católico até ao final da administração portuguesa, no respeito da Concordata entre Portugal e a Santa Sé. Nesse sentido, a norma revogatória do decreto preambular (este o lugar de eleição para disposições transitórias) ressalvou a vigência dos preceitos reguladores do casamento católico «até 19 de Dezembro do corrente ano» (artigo 3.º, n.º 2, alínea b)). O artigo 27.º do decreto é também, todo ele, dedicado a esta matéria, reconhecendo-se ali validade e eficácia aos casamentos católicos celebrados até àquela data, continuando a ser-lhes aplicável o regime actual, «devidamente adaptado às normas do novo Código relativas ao processo de casamento» (n.º 1). Os casamentos celebrados nesta modalidade serão, contudo, transformados ope legis em casamentos civis após 19 de Dezembro (n.º 2), não mais podendo, então, as causas de invalidade e dissolução do casamento católico, que não sejam reconhecidas no novo articulado, ser invocadas (n.º 3) e deixando os tribunais eclesiásticos de ter jurisdição em Macau (n.º 4).

95. Foi também eliminado o processo preliminar de publicações para casamento (cf. artigos 1597.º a 1599.º, 1603.º e 1610.º a 1614.º do Código Civil).

96. Aparentemente inovadora é também a previsão da união de facto no articulado do projecto. Contudo, o respectivo coordenador, Dr. Miguel Urbano, recordou, no decurso das reuniões havidas com a Comissão Eventual, que a tutela do unido de facto já existe no ordenamento actual, nomeadamente em sede de direito a alimentos após o falecimento da outra parte (artigo 2020.º do Código, onde o período a considerar são dois anos), pelo que a inclusão do instituto não é deveras revolucionária. Recordou, ainda, que a Assembleia Legislativa também já havia tutelado esta figura no RAU, ao permitir a transmissão do direito ao arrendamento «por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver pessoa que com ele viva há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens» (artigo 104.º, n.º 2, alínea e)). Considerou, então, que o projecto procurou, antes, sistematizar alguns aspectos da união de facto, em vez de criar um novo instituto. Reiterou que esta nada tem a ver com o concubinato (aliás, como mais tarde foi esclarecido, na tradução para chinês foi empregue um termo diferente do que consta da legislação da Formosa, precisamente porque este poderia ser entendido como coabitação, que é também uma situação de todo diferente da união de facto, já que esta implica que nenhuma das partes seja casada, o que pode não suceder na coabitação ou no concubinato), sendo uma situação estável equiparada ao casamento — apenas sem o vínculo formal deste —, razão pela qual se lhe estenderam, inclusive, alguns dos impedimentos aplicáveis ao casamento (artigo 1472.º, n.º 1, alínea b), do projecto). No entanto, é assumido que o casamento e a união de facto são institutos perfeitamente distintos, até porque as partes, ao optarem por este, quiseram um estatuto mais leve, mais desprendido.

97. Um dos reflexos do casamento transpostos para este instituto é a admissi-bilidade de os unidos de facto adoptarem, desde que estejam nessa situação há mais de cinco anos (artigo 1828.º, n.º 1).

98. O direito a alimentos — o chamado «apanágio do unido de facto» — foi alvo de algumas modificações; entre elas, alargou-se de dois para quatro anos o período de duração necessária da relação para que a parte sobreviva adquira esse direito (artigo 1862.º, n.º 1).

99. Também a tutela sucessória foi objecto de intervenção, tendo o unido de facto sido colocado na terceira classe de sucessíveis, mas só na sucessão legítima — i.e., como herdeiro legal (quando o falecido não dispôs válida e eficazmente sobre todo ou parte do seu património) — e desde que se encontrasse nesse estado há, uma vez mais, um mínimo de quatro anos (artigos 1973.º, n.º 1, alínea c), e 1985.º). Porquê este período de tempo, quando a disposição sobre as condições gerais de relevância da união de facto aponta para dois anos (1472.º, n.º 1, alínea c))? O Executivo justificou esta discrepância com a necessidade de um indício de estabilidade acrescida para que a relação tivesse relevo ao nível sucessório (o mesmo se poderá dizer para efeitos do apanágio do unido de facto).

100. Uma discrepância aparentemente deliberada afigurava-se existir entre o texto dos artigos 1471.º, que afirma ser a união de facto «a relação havida entre duas pessoas», e 1462.º do projecto, que só admite o casamento entre pessoas de sexo diferente. Significaria isto ser admitida a união de facto entre pessoas do mesmo sexo? Não, segundo o Executivo, até porque isso afrontaria convicções generalizadas na sociedade local. Tendo as pessoas que viver «em condições análogas às dos cônjuges», o requisito da heterossexualidade é também aqui aplicável. A expressão «de sexo diferente» também chegou a constar da noção de união de facto no anteprojecto, mas acabou por ser retirada por se entender que a remissão para a noção de casamento era, já por si, suficientemente elucidativa. Com a vantagem de se ter deixado a porta entreaberta para uma eventual adaptação deste instituto a uma futura evolução de mentalidades, nomeadamente com concretização jurisprudencial, que leve à aceitação de uma união de facto homossexual com relevância jurídica para certos efeitos (que, no entanto, seria hoje claramente contra legem, face ao sentido presente do articulado em preparação). Mas já uma evolução no sentido da possibilidade de adopção por unidos de facto do mesmo sexo ou mesmo por casais também homossexuais é liminarmente rejeitada pelo Executivo, que reitera que a redacção do n.º 1 do novo artigo 1828.º, ao exigir aos potenciais adoptantes a vida em união de facto há mais de cinco anos, impede, por via da remissão que o artigo 1471.º faz para os requisitos do artigo 1462.º, a adopção nessas condições. O mesmo raciocínio leva, acrescente--se, à impossibilidade legal de sucessão legítima de unidos de facto do mesmo sexo (artigos 1973.º, n.º 1, alínea c), e 1985.º, já indicados supra) — aliás, em bom rigor, se são do mesmo sexo, não são sequer unidos de facto em termos jurídicos.

101. Quanto ao registo de casamentos celebrados no estrangeiro, houve também uma evolução do projecto. Numa primeira redacção, discriminavam-se as situações em que o mesmo era obrigatório, tendo por base uma certa analogia entre esta questão e a do estatuto pessoal dos cônjuges: se duas pessoas contraíssem matrimónio e ficassem sujeitas à lei de Macau, por aqui residirem habitualmente (já que, de acordo com o regime do estatuto pessoal, o estatuto do próprio casamento é definido pelo critério da residência habitual comum dos cônjuges — artigo 50.º, n.º 1, do projecto), então também deveriam estar sujeitas a um sistema de inscrição registral obrigatória do seu casamento. Todos os casamentos celebrados entre residentes habituais de Macau deveriam estar, pois, sujeitos a registo. Isto permitiria a qualquer interessado que pretendesse saber, v.g., se um dos cônjuges pode ou não dispor dos seus bens, obter essa informação na conservatória do registo civil através de um mero pedido de certidão do casamento em causa.

102. Sucede que os conservadores do registo civil suscitaram imensas dúvidas sobre esta solução, alegando que seria de muito difícil concretização, visto que o registo local está apenas centrado nos naturais de Macau, nas pessoas que aqui celebram o casamento e nos nacionais portugueses. As outras situações (dois residentes habituais de Macau que casem em Hong Kong, por exemplo) não estão sujeitas a registo obrigatório. Em face desta realidade, e apesar de a solução inicial ser tida por mais correcta, a redacção do projecto evoluiu para a versão actual, em que não são indicados os casamentos sujeitos a registo obrigatório — com excepção dos celebrados em Macau perante funcionário do registo civil, que deverão cumprir esse procedimento —, e se remete para o futuro Código do Registo Civil o desenvolvimento desta questão (artigo 1523.º, n.º 1, do projecto). Será, então, a lei registral a encontrar o modelo mais exequível para efeitos de sujeição do casamento a registo obrigatório.

103. Note-se, contudo, que já hoje o Código Civil admite o registo de casamentos «que não contrariem os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português», «a requerimento de quem mostre legítimo interesse no assento» (artigo 1651.º, n.º 2, do Código Civil), e que idêntica disposição consta, mutatis mutandis, do projecto (artigo 1523.º, n.º 2).

104. Objecto de debate nas reuniões entre a Comissão e o Executivo foi também a questão da indisponibilidade da casa de morada de família, ainda que sendo bem próprio de um dos cônjuges, adquirido antes do casamento (artigos 1548.º, n.º 2, e 1549.º do projecto), tal como já hoje sucede, restrição que tem levado a que quando o respectivo proprietário a queira alienar simplesmente declare habitar noutro lugar. O Executivo justificou esta opção de continuidade como um reflexo da veia social que o sistema vai mantendo, com a vantagem (ainda que em desfavor de terceiros) de, em caso de disposição fraudulenta da casa, facultar um meio de defesa ao cônjuge que não deu o seu consentimento (que poderá, assim, interpor uma acção de anulação daquele acto). Alguns Deputados da Comissão entendem, ainda assim, que esta restrição é descabida no regime de separação de bens.

105. Outra preocupação manifestada por membros da Comissão reporta-se à execução de bens comuns do casal, para pagamento de dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, face à actual existência de uma moratória até à separação das meações (cf. artigos 1696.º, n.º 1, do Código Civil e 825.º do Código de Processo Civil). O novo regime matrimonial supletivo de participação nos adquiridos constitui, desde logo, uma evolução neste tocante, já que, ao eliminar o património comum, suprime a necessidade de separação de meações para satisfação das dívidas individuais dos cônjuges — os bens próprios de cada um são directamente afectos ao pagamento das respectivas dívidas; sendo comuns as dívidas, respondem os patrimónios de ambos.

106. Mesmo em relação ao presente regime de comunhão de adquiridos regista-se um progresso: segundo o projecto, perante dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, e na falta ou insuficiência de bens próprios, o credor pode nomear à penhora bens comuns e se o outro cônjuge não requerer, nos termos da lei de processo, a separação judicial de bens, a execução dos bens penhorados prossegue (artigo 1546.º, n.º 3). Acresce que, além dos bens próprios, também certos bens comuns respondem pelas dívidas individuais dos cônjuges, sem necessidade de divisão das meações: é o caso dos rendimentos do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor (n.º 2).

107. O projecto, no seu artigo 1634.º, confere também ao conservador do registo civil poderes para decretar o divórcio por mútuo consentimento. A simplificação deste processo é tida como positiva, mas alguns membros da Comissão entendem que tal não deve passar pela atribuição desses poderes a entidades exteriores aos tribunais. O Executivo clarificou que essa situação só é possível na inexistência de filhos menores (artigo 1628.º, n.º 2). Este é, aliás, o factor que determina a necessidade de observância de mais ou menos formalismos no processo de divórcio. Não havendo filhos menores a cargo dos pais — em suma, não havendo terceiros directamente envolvidos no processo de divórcio —, entendeu-se que a simplificação processual deveria ir o mais longe possível, o que foi concretizado, designadamente, com a medida acima referida, de intervenção do conservador, e com a realização tendencial de uma só conferência (1631.º a 1633.º). Havendo, pelo contrário, filhos menores, só o juiz poderá decretar o divórcio e terá sempre que convocar uma segunda conferência, a realizar entre três e seis meses mais tarde, embora possa aprazá-la desde logo; diferentemente do agora sucede, em que as partes têm que observar um período de reflexão de três meses e só então, elas próprias, requerer a segunda conferência (cf. os mesmos preceitos).

108. As duas alterações fundamentais ao nível do divórcio foram, todavia, outras, no entender do Executivo. A mais importante terá sido a redução do prazo para a separação de facto servir de fundamento do divórcio litigioso, dos actuais seis para dois anos (artigo 1637.º, alínea a), do projecto). A outra, a também diminuição do prazo que é necessário observar antes de ser possível a interposição de uma acção de divórcio por mútuo consentimento, de três para um ano (1630.º, n.º 1).

109. A Comissão interpelou ainda o Executivo sobre a necessidade ou desnecessidade de produção de prova dos factos alegados pelo cônjuge que interpõe acção de divórcio litigioso, quando a outra parte confessa ou simplesmente não contesta. A dúvida não mereceu resposta do coordenador do projecto, que alegou tratar-se de uma questão de direito processual civil. Em todo o caso, esclareceu que o sistema ainda procura determinar o principal culpado do divórcio, porque daí podem resultar para este algumas sanções (v.g., responsabilidade civil por danos morais causados ao outro cônjuge devido ao divórcio).

110. Assinale-se também a eliminação da figura da separação judicial de pessoas e bens (artigos 1794.º a 1795.º-D do Código Civil).

111. No instituto da filiação, efectuaram-se diversas alterações em matéria de estabelecimento da filiação, mas mantiveram-se os efeitos desta quase inalterados (artigos 1649.º a 1722.º do projecto).

112. Foi introduzida uma breve regulamentação «dos efeitos da procriação medicamente assistida ao nível do estabelecimento da filiação» (artigos 1723.º a 1728.º do projecto).

113. Ao nível da adopção, nota essencial para a «extinção da figura da adopção restrita, como figura a constituir no futuro» (artigos 1977.º e 1992.º a 2002.º-D do Código Civil), quer por ser desfasada de um «sistema como o nosso em que o tratamento da filiação procura garantir a plena igualdade entre os filhos, independentemente das causas que tenham estado por detrás da filiação», que porque em Macau «não tem havido carência de candidatos a adoptantes para as crianças carenciadas deste instituto», o que terá levado o Executivo a considerar não haver «que efectuar cedências em nome de uma maior flexibilização e promoção da adopção», especialmente «à custa de outros valores ponderosos que o sistema quer ver prioritariamente protegidos».

Livro V — Direito das Sucessões

114. O carácter muito técnico deste Livro e o grande rigor das soluções vigentes levaram a que as poucas alterações aqui produzidas resultassem essen-cialmente de opções de política legislativa. Contrariando mesmo o que é afirmado na «breve nota justificativa», quase podemos asseverar que este foi o Livro objecto de menor intervenção.

115. No que concerne à tutela da família, o actual sistema tem sido alvo de críticas por aquilo que é entendido como uma excessiva protecção do cônjuge: por força do casamento, tem direito a metade dos bens comuns do casal e é herdeiro legitimário e legítimo do seu consorte, na primeira classe de sucessíveis; nunca podendo receber menos de um quarto da herança, ainda que a ela concorra com mais de três filhos (artigos 2139.º, n.º 1, e 2157.º do Código Civil). O projecto assumiu o propósito de esbater esta situação de vantagem, adoptando o seguinte sistema: o cônjuge sobrevivo continua na primeira classe de sucessíveis com os filhos (artigo 1973.º, n.º 1, alínea a), do projecto), mas perde o direito a essa quota mínima de um quarto da herança — a divisão passa a ser simplesmente por cabeça, em partes iguais para todos (1979.º, n.º 1). Alguns elementos da Comissão discordam desta medida, que poderá criar dificuldades ao cônjuge sobrevivo, especialmente em relação à casa de morada de família, quando o valor desta tenha um peso significativo no conjunto da herança (o que sucede com frequência). Ademais, a regra natural da vida é o cônjuge sobrevivo falecer antes dos filhos, pelo que estes acabarão por herdar a parte dele.

116. Em defesa da nova solução, referiu o Executivo, contudo, não encontrar no direito comparado a nossa actual protecção do cônjuge. Além disso, o testador pode ainda atribuir-lhe a quota disponível. Mais, se a legítima do cônjuge sobrevivo for insuficiente, tem ainda uma outra protecção, ainda que mais fraca: o chamado apanágio do cônjuge sobrevivo, que consiste num direito a alimentos a suportar pelos rendimentos dos bens deixados pelo falecido (artigo 1859.º do projecto).

117. Verifica-se também uma redução da legítima, da «porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários» (artigo 1994.º do projecto):

— a legítima do cônjuge, se não concorrer com descendentes nem ascendentes, é reduzida da actual metade para um terço da herança (artigos 2158.º do Código Civil e 1996.º do projecto);

— a legítima do cônjuge e dos filhos ou do cônjuge e dos ascendentes, em caso de concurso, é encolhida de dois terços para metade da herança (n.os 1 dos artigos 2159.º e 2161.º do Código Civil e dos artigos 1997.º e 1999.º do projecto);

— não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos, que é actualmente de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais, é estreitada para um terço ou metade da herança, respectivamente (n.os 2 dos artigos 2159.º do Código Civil e 1997.º do projecto);

— finalmente, a legítima dos ascendentes que concorrem sozinhos (por falta de descendentes e cônjuge sobrevivos), que é actualmente de metade ou um terço da herança, conforme sejam chamados os pais ou os ascendentes do segundo grau e seguintes, é diminuída para um terço ou um quarto da herança, respectivamente (n.os 2 dos artigos 2161.º do Código Civil e 1999.º do projecto).

118. Como se constata, é mantida uma quota indisponível, ainda que mais reduzida, com o objectivo de protecção da família, tanto mais que o direito a alimentos é de difícil concretização num território como Macau, face à grande mobilidade dos seus habitantes.

119. Passa também a ser admitido que ambos os cônjuges, quando da celebração do casamento (através da convenção antenupcial) ou mais tarde (mediante a convenção pós-nupcial), renunciem reciprocamente (e só se assim for) à qualidade de herdeiros legitimários um do outro (artigos 1571.º, 1578.º e 1995.º do projecto). O que nada tem a ver, entenda-se, com a manutenção do regime de bens do casal — cada cônjuge continua a ter direito à sua meação nos bens comuns. O cônjuge mantém também a protecção, já apontada, do regime do apanágio do cônjuge sobrevivo. A Comissão considera que a possibilidade de renúncia à qualidade de herdeiros legitimários através de convenção pós-nupcial não resulta clara do articulado, até porque o seu artigo 1995.º, sobre os herdeiros legitimários, apenas refere o artigo 1571.º, respeitante a convenção antenupcial. Preferível seria clarificá-lo no artigo 1578.º

120. Numa perspectiva de equiparação dos filhos aos cônjuges, também o instituto da colação foi ajustado. Até hoje, os bens doados ao cônjuge em vida do de cujus não eram trazidos à colação (artigo 2107.º do Código Civil), situação de privilégio alvo de alargadas críticas da doutrina portuguesa, particularmente porque a reforma de 1977 colocou o cônjuge na posição de herdeiro legitimário na primeira classe sucessória, mas não o sujeitou à colação (para alguns, isso terá sido mesmo uma lacuna do legislador da época). Com o novo articulado, é feita a extensão deste instituto ao cônjuge (artigos 1945.º e 1946.º do projecto).

121. A colação assemelha-se a uma presunção de vontade: quem dispõe dos bens a título gratuito tem sempre a possibilidade de dispensá-la (i.e., de declarar que os bens doados não estão sujeitos a colação, tendo essa manifestação de vontade que obedecer à mesma forma da doação — artigo 1954.º do projecto); no silêncio do doador, presume-se a sua vontade e chamam-se os bens à colação. E note-se que a dispensa de colação pode ser feita à posteriori (n.º 1 do mesmo artigo).

122. Estão excluídas da colação as doações de diminuto valor económico (a generalidade das chamadas doações manuais, que têm a ver com a vida corrente), as despesas com alimentos dos descendentes e cônjuge e com a contribuição para os encargos da vida familiar e as despesas com o casamento, estabelecimento e colocação dos descendentes, «na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido» (artigo 1951.º, n.º 2, do projecto). A utilização da expressão «diminuto valor económico» apresenta o óbvio mérito da longevidade, por contraponto à fixação de um montante, que rapidamente ficaria desactualizado. A jurisprudência encarregar-se-á da determinação e actualização dos montantes. Por outro lado, o instituto contém regras para a determinação do valor dos bens a trazer à colação, não estando prevista a sua entrega em primeira linha, excepto com o acordo de todos os herdeiros (1949.º e 1950.º).

123. Foi também debatida a manutenção dos ascendentes no leque dos herdeiros legitimários, vozes havendo na Comissão a defenderem a sua inclusão apenas na sucessão legítima. O Executivo decidiu-se pela continuidade do sistema actual, face ao respeito acrescido que os ascendentes devem merecer, embora com redução da respectiva legítima (quota indisponível), nos termos atrás descritos. Atribuir aos ascendentes apenas o estatuto de herdeiros legais ou legítimos é insuficiente para garantir-lhes um mínimo de protecção, dado que o de cujus pode, em vida, por testamento afastá-los da herança. Por outro lado, existe um dever de alimentos dos pais face aos filhos e vice-versa, mas o dever dos filhos não continua, naturalmente, para lá da sua própria morte, pelo que se obtém esse prolongamento através da atribuição de um património mínimo aos seus ascendentes, o que, porventura, até se afigura como uma solução mais segura que o dever de alimentos (artigo 1850.º, n.os 1, alíneas b) e c), e 2, do projecto). Ademais, é estatisticamente muito raro os ascendentes chegarem a herdar.

124. No instituto da representação foi basicamente operada uma única mudança, ao nível da sucessão testamentária, em termos de restrição dos destinatários deste direito: no Código vigente, «gozam do direito de representação na sucessão testamentária os descendentes do que faleceu antes do testador ou do que repudiou a herança ou legado» (artigo 2041.º, n.º 1); enquanto que para o futuro este terá lugar apenas «em benefício dos descendentes do filho ou irmão do testador que faleceu antes deste ou que repudiou a herança ou o legado» (artigo 1880.º, n.º 2, do projecto). Em suma, passam a ser exactamente os mesmos os herdeiros que beneficiam do direito de representação na sucessão legal (1880.º, n.º 1) e na sucessão testamentária. Quando o testamento é a favor de terceiros, deve ser qualificado como um acto de benefício pessoal, não devendo, como tal, conferir aos respectivos descendentes qualquer direito de representação.

125. A Comissão considera que os formalismos do testamento marítimo cerrado são excessivos, em particular a exigência que o comandante do navio cosa e lacre o documento (artigo 2046.º, n.º 3, do projecto). O Executivo acolheu favoravelmente a crítica, reconhecendo que o que houve aqui foi apenas inércia do legislador e não uma preferência pela solução vigente, e já respondeu — primeiro por canais informais e depois na reunião de 25 de Maio passado — que a redacção do preceito foi, entretanto, alterada. No entanto, a Comissão ainda não recebeu o novo texto, pelo que não pode, obviamente, pronunciar-se sobre a bondade da alternativa encontrada.

126. Foram também suscitadas algumas dúvidas sobre a clareza do artigo 2055.º do projecto, que prevê «disposições a favor da alma». Em especial, será a respectiva versão chinesa suficientemente elucidativa? O Executivo esclareceu que estas disposições não constituem encargos da sucessão, antes inserindo-se no próprio conteúdo do testamento, e considerou não existirem especiais dificuldades de interpretação neste ponto. Ainda assim, em momento posterior optou por substituir aquela expressão por «disposição com o fim de venerar a memória do falecido», retirando, pois, a conotação religiosa ao preceito.

127. Confrontado com dúvidas de membros da Comissão sobre a utilidade de continuar previsto o inventário obrigatório (artigos 1891.º, 1940.º e 1941.º do projecto), o Executivo justificou ser este um resultado das soluções contidas no Código de Processo Civil — ou seja, uma questão adjectiva e não uma opção de direito substantivo. Daí que se este diploma evoluir para o inventário facultativo, também o Código Civil será adaptado a esse regime. De qualquer modo, alega o Executivo que o inventário obrigatório apresenta a virtude de melhor garantir quais os bens existentes; que bens ficam sujeitos à administração do representante legal que gere a herança em determinadas situações, como a menoridade ou interdição do herdeiro. Em todo o caso, o projecto consagra, desde já, uma restrição ao actual âmbito do inventário obrigatório: sendo a herança deferida a pessoas colectivas, só há lugar a ele quando estas sejam de utilidade pública administrativa (cf. n.os 1 dos artigos 2053.º do Código Civil e 1891.º do projecto).

128. A indignidade (artigos 1874.º a 1878.º do projecto) e a deserdação (2003.º e 2004.º) continuam a ser pouco exequíveis, já que o autor da sucessão normalmente evitará despoletar um procedimento criminal contra o seu herdeiro — a intenção de penalizá-lo pretende-se circunscrita à não sucessão. Conse-quentemente, ver-se-á impossibilitado de invocar quaisquer fundamentos daquelas duas figuras. O Executivo reconheceu, aliás, a blindagem do sistema actual e admitiu tentar flexibilizá-lo, aumentando as possibilidades de deserdação, ainda que mantendo uma certa protecção aos herdeiros. A Comissão desconhece, por ora, se este intento foi concretizado.

IV — CONCLUSÕES

129. Não obstante não ter tido ainda acesso às últimas alterações que o articulado terá sofrido, e sem prejuízo das observações feitas ao longo do presente parecer, a Comissão Eventual considera que este projecto de Código Civil de Macau merece todo o devido reconhecimento, pelo seu rigor técnico e pelo esforço de modernização e de adaptação às especificidades do Território que exibe.

130. Ainda assim, e respeitando embora todos os esclarecimentos prestados pelos representantes do Executivo, a Comissão reitera algumas reservas quanto ao arrojo de certas soluções, mormente em sede do Livro IV, sobre o Direito da Família.

131. Tal como está previsto em relação ao Código Comercial (artigo 8.º do respectivo projecto de decreto preambular), propõe-se aqui também a criação de uma comissão, em moldes idênticos, para acompanhar a aplicação do Código Civil durante os seus primeiros cinco anos de vigência.

132. A Comissão congratula-se ainda, e uma vez mais, pelo espírito de coope-ração aberta e leal que sempre presidiu aos trabalhos conjuntos que teve oportunidade de desenvolver com o Executivo neste tocante.

133. A participação da Assembleia Legislativa neste fundamental processo legislativo, que irá dar lugar a uma das peças basilares do ordenamento jurídico de Macau, deverá ser culminada com a apreciação do presente parecer em sessão plenária, para a qual deverá feito uso da faculdade prevista no artigo 37.º, n.º 2, do Estatuto Orgânico.

Macau, aos 16 de Julho de 1999.

A Comissão, José Manuel de Oliveira Rodrigues (Presidente). — Chan Kai Kit — Henrique Miguel de Senna Fernandes — Jorge Neto Valente — Leonel Alberto Alves — Leong Heng Teng — Tong Chi Kin — Vitor Ng — Lau Cheok Va.